A frase que dá título a este texto tende a ter, no leitor ou leitora, efeitos ambivalentes que, por norma, oscilam entre o choque e o gozo. O choque porque parece-nos, à partida, desumano desejar a morte a quem quer que seja, particularmente em detrimento da sua heterossexualidade, e o gozo porque parece-nos ridículo e até arrojado que o sujeito ocultado (presumivelmente “não heterossexual”) possa ter o desejo de atacar heterossexuais, além de que a frase nos parece atípica por contraposição ao seu oposto (“Paneleiros/Fufas, eu digo: morram!”). Na verdade, não são todos os dias que se ouve que “os/as heteros deveriam morrer”. Em qualquer um dos casos, choque ou gozo, a frase suscita a perplexidade.
Não deixa de ser curioso que o seu homólogo, a frase “paneleiros/fufas, eu digo: morram” (note-se que nem sequer existem termos pejorativos para heterossexuais, de ambos os sexos), pelo contrário, se apresente como uma frase recorrente, banal, comum, e ainda hoje, presente no vocabulário de muita e “boa” gente. Na verdade, ao contrário do que acontece com outros termos derivados do calão e/ou assentes em qualquer tipo de discriminação como “puta” ou “preto/a”, usar-se termos negativos para a identidade homossexual e desejar a sua repressão, isolamento, violentação ou até mesmo morte parece ser bastante habitual. Mesmo com a desculpa que ao dizer-se “maricas” ou “sapatona” a intenção subjacente não é, de todo, ser-se contra os/as homossexuais, por detrás do termo, se esconde a carga estigmatizante da homofobia simbólica. E sejamos francos/as, nunca se poderá comprovar que num determinado contexto, uma pessoa não use esses termos para atacar implicitamente alguém homossexual para que depois possa rematar cinicamente: “oh, eu nunca teria usado esse termo se soubesse que você estava aí a ouvir…” quando, de facto, foi esse, desde do início, o propósito da pessoa. Normalmente é isso que acontece em casos de despedimentos de pessoas gays e lésbicas. A questão não deveria ser: “como se prova que se está a despedir alguém por ser homossexual?”, a questão deveria ser: “como se prova que não se está a despedir uma pessoa por ser homossexual?”. O efeito é o mesmo.
Ora, perante a frase que alimentou os meus dois últimos parágrafos, invertendo o termo “heteros” pelo termo “paneleiros” ou “fufas”, fica-se diante das rimas de uma das canções do cantor Sizzla cujo concerto foi na passada quinta-feira. Por isso mesmo, associações de defesa dos direitos de gays e lésbicas protestaram contra o concerto: Sizzla, cantor jamaicano de reggae, tem rimas nas suas canções que expressam um discurso de ódio contra os/as homossexuais, entre outro tipo de desigualdades (i.e., o sexismo). Nem sequer contra a homossexualidade (protejo-me antevendo discursos religiosos que idilicamente separam “ato” de “identidade”), contra as pessoas homossexuais. Fãs do cantor, perante a contestação das associações de defesa dos direitos gays e lésbicos que exigiam o cancelamento do mesmo, alguns/mas mais homofóbicos/as, outros/as menos, argumentaram que afinal de contas se trata de uma questão de liberdade de expressão, tentando desvalorizar os discursos que são claramente de ódio (não vejo que outro tipo de demonstração de ódio seja mais forte do que desejar a morte a alguém), argumentando que não é porque o Sizzla prega a morte dos/as homossexuais que alguém que o ouve vá matar de facto homossexuais (como se o discurso de “morte aos/às pretos/as!”, categoria na qual o Sizzla se parece encaixar, fosse menos grave porque afinal de contas eu até o ouço e não quero matar pessoas negras…), e tentando dramatizar a atitude dos coletivos gays e lésbicos fazendo deles umas virgens ofendidas (trata-se do argumento do gay panic conservador) ou, em última instância, um lobby opressor (trata-se do argumento relativista) que procura a todo custo censurar quem lhes opõe (claro está, as leis contra a violação sexual censuram os/as violadores/as e a proibição dos homicídios censura os serial-killers…) Em todos os casos, independentemente do argumento, o principal veículo legitimador do ódio homofóbico é a liberdade de expressão.
É nesta altura que me interrogo (esquecendo momentaneamente as directivas dos grupos de defesa dos direitos humanos que referem que liberdade de expressão não se pode, nunca, confundir com discurso de ódio): se um sujeito ou sujeita pode, no usufruto da sua liberdade de expressão, invocar a morte dos/as homossexuais porque raio de razão não pode um/a outro/a, também no usufruto da sua liberdade de expressão, desejar a morte aos/às heterossexuais? É essa a mensagem provocatória que procuro passar aos arautos da liberdade de expressão que, claro está, confundem “liberdade” com “vale tudo”. Com a minha estratégia sarcástica e, sobretudo, performativa, procuro abalar o argumento da liberdade de expressão, colocando o/a heterossexual no lugar do/a “Outro/a”, do/a estigmatizado/a, do/a diferente, do exótico, em suma, daquele/a que também é discriminado/a. Parece pois que a minha estratégia se distancia do apelo à tolerância pregada por ativistas gays e lésbicas que não anula, de forma alguma, a heterossexualidade de ter o poder de tolerar (note-se que a menção ao artigo 13 da Constituição da República Portuguesa não serve como motivo de cancelamento do concerto). Uma clara forma de dizer suplicando: “por favor não nos matem, senhores heteros!” e que soa, além de ser verdadeiramente humilhante, de forma ridícula a quem a ouve pois repercute a vitimização excessiva e sublinha o carácter vitorioso da homofobia (“eles/as sofrem!”), vitimização essa que, em muitos momentos históricos, serviu de justificação para salientar a patologização da própria homossexualidade (cf. os trabalhos de Evelyn Hooker). A título de exemplo ilustrativo, em conversa com um sujeito sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e que se mostrava absolutamente contra, este diz-me: “vocês, gays, nunca vão ser felizes! Irão sempre sofrer!”.
Tenho plena consciência que a minha reação é perigosa. É perigosa porque pode cumprir algum dos propósitos da própria homofobia ao ser interpretada (convenientemente ou não) não como sarcástica mas como ontologicamente realística fazendo cumprindo a profecia auto-realizável da própria homofobia (“Estão a ver como os homossexuais são? Merecem ser discriminados!”) mas, mesmo correndo-se o risco de fomentar o preconceito com uma escalada de violência ímpar, não deixa de ser poderosa porque para discriminar é preciso TER O PODER de discriminar. Ter o poder de nomear. Ter o poder de julgar. Ora, historicamente os/as homossexuais não tiveram o poder de o fazer. Pela primeira vez na História, hoje mais do que ontem, os gays e as lésbicas tem o poder de se transformarem em objetos de discurso a sujeitos/as de palavra (o que tem acontecido nas últimas décadas), uma palavra que, claro está, é heterogénea e plural mas que não é por causa disso que é menos válida.
Quando eu uso a frase “os/as heteros deveriam morrer” eu devolvo (sim, soa pretensioso) aos/às homossexuais esse poder que lhes foi retirado extraindo a hegemonia do poder aos/às heterossexuais. Um poder de nomear, de julgar, de controlar. É por isso que a frase causa indigestão afinal de contas trata-se de “paneleiros com poder” (fufas seria ainda mais atípico). Essa indigestão é visível nos comentários que me são dirigidos nos grupos do facebook por indivíduos que não se atrevem a criticar a homofobia (quem cala, consente) e cinicamente, fazendo uma interpretação leviana ou falsamente ingénua (aquilo que eu chamo de “má fé”) da minha ironia, simulam o papel das virgens ofendidas, as mesmas virgens ofendidas que os/as fãs do Sizzla tentam fazer dos gays e das lésbicas. Interrogo-me se essa indignação alguma vez se canalizou para a homofobia. Afinal de contas eu não tenho a projeção de um Sizzla e pareço ser peça rara na comunidade LGBT (ou não).
Numa outra perspetiva, os ativistas gays (e agora falo para os gays), invés de representarem unidade, preferem contrariar e focalizar no meu discurso “heterofóbico”. Essa estratégia, penso, é uma forma socialmente correta de mostrar à sociedade (essa amálgama de gente que parece mais uma entidade abstrata mas heterossexualizada do que uma composição de sujeitos heteros, gays, lésbicas, trans, negros/as, ciganos/as, judeus/ias, etc) e portanto aos/às heterossexuais como é ser, como dizia o Foucault, o bom sujeito queer, o bom gay, o homossexual exemplar que acredita no mundo gandiniano como descreve Lennon em “Imagine”. Ora, nada melhor do que ser-se “o bom gay” fazendo dos outros gays “maus”, porque, já se sabe, que uma realidade só pode ser definida por oposição a outra que é discursivamente produzida como não sendo da mesma substância (homem/mulher, negro/branco, pobre/rico, etc). As definições reiteram-se nas suas não definições, isto é, algo se define expressando aquilo que não é.
Este binarismo “gay bom/gay mau”, fictício mas desigual quanto às lógicas do poder, encontra-se muito presente nas discursividades do género: “eu sou gay mas não sou bicha”. A bicha, identidade subalterna (ou subalternizada) surge, além de uma identidade fantasmagórica (afinal de contas, fala-se de algo que nunca se materializou; penso nos jovens gays e os seus medos e estratégias de aceitação pós-coming out), como um corpo abjecto, perfeito escape goat que expia a “condição” homossexual do gay e procura justificar a tolerância do hetero. Uma estratégia que, claro está, é desigual (em nenhum momento, ouvi um hetero a exclamar: “eu sou hetero mas não sou machão”) e que representa toda a tentativa justificadora dos gays. Tomemos o caso da pretensa promiscuidade gay (assumindo “promiscuidade” como conceito adquirido, sujeito a juízos de valor morais no sentido da sua condenação; lembro que este texto é um artigo de opinião e, embora, reflita as minhas leituras teóricas, não é certamente um texto científico). Perante uma acusação deste género, uma pessoa gay diria comummente: “há estudos que demonstram que não somos promíscuos”. Ora, em nenhum momento ela ataca a heterossexualidade: “e vocês, heteros? Pornografia, prostituição, engates em festas universitárias, publicidade, etc, etc, etc?”. Voltando à questão do “sou gay mas não bicha”, argumentando que o sistema de sexo/género é uma forma simbólica de enunciado da orientação sexual (What’s public? What’s private?), a crítica à bicha, o gay efeminado (note-se que a palavra “efeminado” representa uma anti-naturalidade e não uma ontologia como “feminino”; portanto dizemos menos frequentemente lésbicas “masculinizadas” , mais “lésbicas masculinas”, também porque o ponto de vista é sempre masculino-heterossexual) mantém o sistema heteronormativo intacto: há homens que tem práticas heterossexuais e homens que tem práticas homossexuais, todos eles são masculinos. Se todos são masculinos logo todos serão heteros (o que é infundado de facto, mas em termos de imagem do social é a heteronormatividade que prevalece). Defendo por isso a separação “gay/bicha” e a defesa dos direitos das bichas do preconceito de heteros, e gays. Além deste exemplo, posso usar outros exemplos em que discursividades que ora parecendo emancipatórias pró-gay são na verdade armadilhas ora ocultam forças de poder que na verdade precisam de ser expostas (i.e., os arautos da discriminação contra os bis que ocultam o facto de os bis se vangloriarem da sua superioridade face aos gays; a tensão vivida entre a defesa da identidade gay e a renúncia ao homoerotismo homofóbico; a prostituição masculina e a cedência do poder aos heteros prostitutos, o “ninguém precisa de saber que és gay”, etc).
Esta homonormatividade bajuladora da heteronormatividade (e/ou derivadora dela) acaba, ao evidenciar a factura interna desestruturante da comunidade LGBT, por ser cúmplice da própria homofobia invés de ser tomada como mais-valia. É nesse sentido que a minha estratégia performativa não procura só contrariar os arautos da liberdade de expressão, mas consciencializar a dita comunidade LGBT para o seu agir (vou reapropriar-me de uma expressão irónica) “socialmente correto”. Será preferível (usando o discurso do “homossexual enquanto espécie”) os gays atacarem um dos seus membros ou atacarem a homofobia? A resposta pareceu-me clara: é preferível atacar e domesticar um dos membros até porque é também mais seguro. Nesse sentido, ao renunciarem o poder de discriminar, os gays acobardam-se perante (e bajulam) o poder reiterativo da hetero (sexualidade/normatividade) (algumas leituras poderiam indicar uma troca da identidade empoderada pelo homoerotismo fetichista e sádico mas eu deixo para Freud explicar).
Essa problematização, quer da homofobia quer dos ativistas gays, em torno da minha “heterofobia” (e à qual eu advertidamente ajudo a fomentar) revela, como dizia no início, a perplexidade perante o poder gay, afinal de contas, como é aquele paneleiro se atreve a ser contra os heteros? Ora, essa perplexidade demonstra portanto o poder reificante (da naturalidade) da heterossexualidade que é por isso produzida como sendo a sexualidade legítima, moralmente superior, inabalável e inquestionável. Essa muralha de intocabilidade e subsequente naturalização surge nas palavras dos próprios fãs do Sizzla: é normal a sociedade expressar o ódio pelos gays. É normal a sociedade discriminar a diferença. Com alguns/mas miúdos/as com quem eu falei, no âmbito de um projeto académico e que tinham atitudes de bullying contra outros/as, essa naturalização aparece sobre a forma do “ele ou ela já está habituado/a!”. De facto, quando o/a sujeito/a oprimido/a é um/a, é natural que constantemente ele ou ela o/a seja (vale lembrar o caso da violência doméstica) e portanto reproduz-se e justifica-se a desigualdade sedimentando a ideia da norma que (tem o poder para) exclui(r) e do desvio que é excluído e só se pode resignar (pois não tem poder de excluir); como poderia ser de outra forma? O problema coloca-se quando se inverte a lógica e hierarquia do poder. As estruturas abanam, a sociedade vacila, a heterossexualidade treme. De facto, não acham estranho que a minha reação “heterofóbica” (possivelmente serei o único a pensar desta forma) suscite mais problematização do que a homofobia, essa sim histórica, relativamente universal e constante?
Claro. Os propósitos podem descambar para uma pretensa guerra civil utopicamente ganha pelas maiorias estatísticas que parece ser a heterossexualidade mas, nesse pressuposto, fica evidente a contingência do poder. A dominância heterossexual não encontra os seus fundamentos numa espécie de racionalidade moralmente superior mas apenas num fortuito critério numérico. Se um milhão de pessoas disser que a lua é cor-de-rosa por oposição a meia dúzia que refere que a lua parece ser branca por reflexo do sol, a lua passa mesmo a ser cor-de-rosa. É isso que aconteceu com as teorias da rotação da Terra e do Sol. As verdades são fruto de contextos históricos, produzidas por regimes de poder e por grupos de pressão que para muitos pode ser um tal “lobby gay” para outros a Igreja Católica ou outros grupos religiosos embora neste caso o grupo de pressão seja o mais numérico, o heterossexual.
Em suma, o meu jogo com a alteridade num contexto pós-moderno onde se tende a assistir ao fim das grandes narrativas (sexuais) acaba por ter os efeitos que eu próprio antevira: heteros que me usam para justificar a morte aos paneleiros, paneleiros que do lado deles gritam contra mim. A minha proposta para esse impasse (que não é novo) verdadeiramente aberrante é o jogo duplo: sem cair em essencialismos redutores, proponho a maior unidade da comunidade LGBT, ela própria diversa, perante a homofobia; uma unidade empenhada na luta por uma cidadania política e uma dignidade pública, efectiva e intransigente. Simultaneamente defendo estratégias queer que desfragmentam e expõem de forma crua o essencialismo conservador estilhaçando as suas bases construídas em terreno fluido.
Como sei que a minha proposta é colocada em termos de uma tensão que é preciso constantemente vigiar e regular opto pela assumpção da desestabilização e reafirmo como um eco reiterativo ao som do tão pacifista (!) reggae (nestas coisas não temos que nos justificar): “HETEROS, EU DIGO: MORRAM!”.
Ass. Hugo Santos, licenciado em Ciências da Educação, teórico queer e bicha.