quarta-feira, 18 de junho de 2008

Os antimediários


(...) Deus disse a Jonas: levanta-te e vai a Ninive. Ninive é no actual Iraque (ainda existe) e Deus não gostava do comportamento dos seus habitantes, que se chamavam ninivitas. Então Deus ordenou a Jonas que profetizasse aos ninivitas: mudai ou sereis destruídos dentro de quarenta dias.
Mas Jonas não queria profetizar, veremos adiante porquê. Ao invés de obedecer, fugiu à pressa para um navio e atravessou o Mediterrâneo. Os versículos seguintes contam a perseguição de Deus a Jonas para o forçar a profetizar. Envolvem uma baleia e, como é do conhecimento geral, a baleia engole Jonas e vomita-o nas costas de onde fugira. Finalmente, Jonas tem de ir a Ninive. Tem de profetizar. Profetiza. Os ninivitas arrependem-se. Deus não destrói Ninive.
E aqui vem a parte interessante. Jonas fica furioso com Deus. Acusa Deus de o ter enxovalhado. Ao não ter destruído Ninive, os ninivitas nunca saberiam se a profecia era verdadeira ou não. Jonas não queria passar por um falso profeta. Para tal humilhação, preferia ter ficado calado.

Qual é o problema de Jonas? Na verdade, o problema de Jonas é entender bem a linguagem e os seus efeitos. Jonas sabe que se disser aos ninivitas que Deus destruirá a sua cidade, há duas hipóteses. A primeira: os ninivitas não mudam, são destruídos, e não sobra ninguém para confirmar que Jonas tinha razão. A segunda: os ninivitas mudam, não são destruídos, e ninguém pode garantir que Jonas tinha razão.
Ou seja: há momentos em que ter razão não serve de nada. É melhor ficar calado porque aquilo que dissermos pode influenciar o comportamento das pessoas a que nos dirigimos de forma a refutar a nossa opinião. Svengali chama "efeito de Jonas" a este dilema se falarmos ninguém sabe que tínhamos uma profecia.
O efeito de Jonas é bem compreendido pelas crianças e pelos analistas políticos. Se dissermos, "não és capaz de fazer isto", a pessoa faz para provar que estamos errados. Se não tivéssemos falado, a pessoa nunca seria capaz de o fazer.

Pensando em Jonas, o profeta que não queria profetizar, Svengali inventou a palavra "antimediários". Os antimediários são os intermediários que se recusam a cumprir com o seu papel.
Somos todos intermediários. Isso é uma coisa que os profetas sabiam. Por outro lado, isso é uma coisa que os artistas não sabem: somos todos intermediários. Os artistas chamam a si próprios "criadores", mas enganam-se porque ninguém cria nada. Na verdade, limitamo-nos a repassar, a acrescentar, a comentar, a distorcer.

(...) Há dois exemplos diferentes de antimediários: os que não podem e os que não querem.
o escritor checo Karel Capek criou um antimediário do primeiro género num romance, Vida e Obra do Compositor Foltyn, cujo protagonista se chamava Foltyn e sonhava ser compositor. O "compositor Foltyn" como se apresentava em sociedade, acreditava que um artista genial vive de inspiração, da pura pulsão criativa. Acreditava nisso de tal forma que nunca fizera nenhum esforço para compor seriamente nada. Com o passar dos anos, Foltyn fica cada vez mais ansioso por finalmente compor uma sinfonia e cada vez mais frustrado por não conseguir fazê-lo. Desejava tanto "criar" que nunca lhe passou pela cabeça que teria de contentar-se com ser intermediário, como qualquer artista. A arte chegou até ele, e morreu ali mesmo.

O escritor Herman Melville criou um antimediário do segundo tipo: os que se recusam. A personagem chama-se Bartleby no conto "Bartleby, o escrivão". Bartleby é um amanuense num escritório de Wall Street. De cada vez que o seu patrão o manda fazer algo, responde: "preferia não ter de o fazer". Quando o patrão o despede, ele diz que "preferia não ter de sair". Quando vai preso, Bartleby diz que "preferia não ter de comer".
O seu patrão indigna-se com aquela atitude, mas engana-se: não se trata de uma atitude. Tomar atitudes é coisa de intermediários. Os antimediários, segundo Svengali, sabem que estão limitados às antitudes. Só depois de Bartleby morrer o seu patrão descobre um pormenor que talvez explique a antitude. O anterior emprego de Bartleby fora nos correios, nos arquivos das correspondências mortas, ou seja, das cartas que nunca chegaram aos destinatário. Anos e anos de convívio com cartas de amor, mensagens de pêsames e notícias de família que nunca puderam ser lidas tinham criado nele um profundo desânimo pelas possibilidades da comunicação.
(...) Bartleby é a verdadeira profecia de Jonas: o antimediário perfeito, aquele ser humano que sente que é o elo quebrado duma cadeia inútil.

Svengali in Blitz Janeiro 08

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