terça-feira, 19 de maio de 2009

A Teoria da Costela Bi - As Falácias


Certo dia na Faculdade, fui surpreendido por um comentário da minha amiga, Paula. A Paula tem um amigo que, na loucura da Queima, lhe disse que “toda a mulher tem uma costela bi”. Escusado será dizer que o amigo da Paula é heterossexual né verdade?


Pessoalmente, não concordo nada com esta visão. Primeiro, a generalização falaciosa e tosca do pronome demonstrativo “toda” como se a excepção fosse uma miragem ou, em última instância, não houvesse espaço para uma larga maioria, excepcional até. Afinal de contas, só 10% da população é homossexual, segundo Kinsey. Ora, fazendo jus à estratégia da generalização, como toda a gente sabe a homossexualidade masculina é, de longe, mais frequente que a homossexualidade feminina. Basta ir a um bar gay (ou neste caso, LGBT).


Já se tornou um cliché mais do que verificável e, de certa forma até exaustivo, mencionar que a homossexualidade, ou melhor, a bissexualidade feminina faz parte do fetiche da esmagadora maioria dos homens heterossexuais. É algo que é reconhecido, na actualidade, com a crescente visibilidade, na sociedade, das questões ligadas à homossexualidade (até rimou) e com a recente abertura de mentalidades sobre a sexualidade em geral. O fetiche mencionado é um facto histórico documentado há séculos, tal como a própria homossexualidade masculina, que historicamente até é mais viabilizada, evidente e frequente, apesar de terem existido, durante a Idade Média (e ainda existirem) leis contra a homossexualidade masculina (sodomia) e não existirem para a homossexualidade feminina (porque será?).


Veja-se o caso das sociedades greco-romanas onde, apesar de extremamente machistas e misóginas, enquadravam a homossexualidade masculina num comportamento saudável e até pedagógico e a homossexualidade feminina era considerada, numa primeira fase, uma aberração, uma deformação da mulher e dos seus impulsos, e numa segunda fase minimamente aceitável (temos o caso da ilha de Lesbos, Safo e as Amazonas).


Razão para tal fetiche? A bissexualidade feminina dá ao homem uma sensação de “harém”. As mulheres preparam e cerimoniam o corpo, uma da outra, para o homem dar a golfada final com o seu pénis irrecusável. É por isso que o “lesbianismo puro” é refutado porque os homens acham que uma sexualidade sem pénis não é valida (pensamento muito gay, por sinal).

Como disse anteriormente, não concordo com esta visão mas compreendo o mecanismo por detrás dela. Não só o anseio libidinosamente patriarcal mas também a dinâmica por si só. O que quero dizer com isto? As mulheres heterossexuais são heterossexuais. Ponto. Não gostam de mulheres, não ficam lubrificadas com mulheres. Mas elas não são burras. Elas sabem que os maridos, namorados, etc gostavam secretamente de vê-la com outra mulher (nalguns casos, extra-monogâmicos) então, muitas aceitam, não porque gostam mas simplesmente para agradar. Faz parte da natureza submissa feminina. Não é uma questão de orientação sexual. De desejo interior profundo. É uma questão de comportamento. Superficial, fingido e ridículo. E os homens heterossexuais flirtam com essa possibilidade homoerótica…


É como o futebol: o homem no sofá a ver a Liga dos Últimos, a esposa detesta mas lá vai mandando uns bitaites para mostrar ao marido que não é néscia e até é uma boa esposa…


São esses badamecos machistas que conspurcam a liberdade homossexual. São capazes de tratar os gays abaixo de merda porque não reproduzem (o argumento patético do costume) mas não condenam o lesbianismo. Ora caros amigos, como costumo dizer, cona com cona também não dá bebés. O mais irónico da história, é que perante tal resposta são capazes de afirmar que “sim, mas lésbicas gosto e homens não acho atraente”, como se fosse preciso insultar, bater ou desprezar algo de que simplesmente não apreciamos. Por essa ordem, os gays andavam a alvejar mulheres, os jovens a apedrejar velhinhos e os divinizados com o dom da beleza recusavam-se a ver o Mister Bean.


Depois perante o comentário inverso (“todos os homens tem uma costela bi”) irritam-se e mudam de assunto, ou então, tal observação é imediatamente refutada, como manda a lei dos machões latinos do século XXI, com o argumento “ah, as mulheres são mais bonitas, atraem-se umas às outras”. Eu passo a explicar o que está por detrás desse pensamento:

A sexualidade do homem (gay ou hetero, principalmente) é egocêntrica. Faz parte da natureza masculina. Claro que existem excepções mas, por norma, é assim que funciona. Todo o homem heterossexual acha que os seus gostos são normativos e ideiais, logo também acha que a própria mulher tem que arcar com eles. Na cabeça deles (ou nas cabeças deles), o seu desejo por mulheres puxa também as próprias mulheres para a luxúria. Inconscientemente estão a desvalorizar o gosto próprio da mulher heterossexual por homens e a desvalorizar a sua própria beleza masculina. Aliás, estão-se a desvalorizar a eles mesmos e os seus atributos em detrimento da homossexualidade feminina e a conspirar com um modelo de não perpetuação da espécie (não é esse o argumento deles contra os gays?).


Há um livro que apareceu nos EUA sobre a amizade entre as mulheres (Faderman, L. Surpassing the Love of Men. New York: William Marrow, 1980). É muito bem documentado a partir de testemunhos de relações de afeição e paixão entre mulheres. No prefácio, a autora diz que ela havia partido da idéia de detectar as relações homossexuais e se deu por conta de que essas relações não somente não estavam sempre presentes, mas que não era interessante saber se se poderia chamar a isso de homossexualidade ou não. E que, deixando a relação desdobrar-se tal como ela aparece nas palavras e nos gestos, apareceriam outras coisas bastante essenciais: amores, afetos densos, maravilhosos, ensolarados ou mesmo, muito tristes, muito obscuros. Este livro mostra também em que ponto o corpo da mulher desempenhou um grande papel e os contatos entre os corpos femininos: uma mulher penteia outra mulher, ela se deixa maquiar e vestir. As mulheres teriam direito ao corpo de outras mulheres, segurar pela cintura, abraçar-se. O corpo do homem estava proibido ao homem de maneira mais drástica. Se é verdade que a vida entre mulheres era tolerada, é somente em certos períodos e a partir do séc. XIX que a vida entre homens foi, não somente tolerada, mas rigorosamente obrigatória: simplesmente durante as guerras.
Igualmente nos campos de prisioneiros. Havia soldados, jovens oficiais que passaram meses, anos juntos. Durante a guerra de 1914, os homens viviam completamente juntos, uns sobre aos outros, e, para eles isso não era nada, na medida em que a morte estava ali; e de onde finalmente a devoção de um ao outro, o serviço feito era sancionado por um jogo de vida e morte. Fora algumas frases sobre o coleguismo, sobre a fraternidade da alma, de alguns testemunhos muito parciais, o que se sabe sobre furacões afetivos, sobre essas tempestades do coração que puderam haver ali nesses momentos? E alguém pode perguntar o faz que nessas guerras absurdas, grotescas, nesses massacres infernais, que as pessoas, apesar de tudo, tenham se sustentado? Sem dúvida, um tecido afetivo. Não quero dizer que era porque eles estavam amando uns aos outros que continuavam combatendo. Mas a honra, a coragem, a dignidade, o sacrifício, sair da trincheira com o companheiro, diante do companheiro, isso implicava uma trama afetiva muito intensa. Isto não quer dizer: "Ah, está ai a homossexualidade!" Detesto este tipo de raciocínio. Mas sem dúvida se tem ai uma das condições, não a única, que permitiu suportar essa vida infernal em que as pessoas, durante semanas, rolassem no barro, entre os cadáveres, a merda, se arrebentassem de fome; e estivessem bêbadas na manhã do ataque.
Eu queria dizer, enfim, que qualquer coisa refletida e voluntária, como uma publicação, deveria tornar possível uma cultura homossexual, isto é, possibilitar os instrumentos para relações polimorfas, variáveis, individualmente moduladas. Mas a idéia de um programa e de proposições é perigosa. Desde que um programa se apresenta, ele faz lei, é uma proibição de inventar. Deveria haver uma inventividade própria de uma situação como a nossa e que estas vontades disso que os americanos chamam de comming out, isto é, de se manifestar. O programa deve ser vazio. É preciso cavar para mostrar como as coisas foram historicamente contingentes, por tal ou qual razão inteligíveis, mas não necessárias. É preciso fazer aparecer o inteligível sob o fundo da vacuidade e negar uma necessidade; e pensar o que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e como inventar um jogo?


De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, pp. 38-39. Tradução de wanderson flor do nascimento.

A adoração às lesbicas (desculpem-me as mulheres lésbicas ou bissexuais) irrita-me pela simples razão de que se trata de machismo puro. Porque aliás, NENHUM homem heterossexual conseguirá nada com uma mulher lésbica, como eles possam pensar à partida, por razões óbvias. As percentagens disso acontecer são as mesmas de um homem gay conseguir algo com eles.

Como Kinsey, o pai da sexologia, comprovou nos anos 50, através dos seus famosos relatórios, 37% dos homens já tiverem, pelo menos, uma experiência homossexual com direito a orgasmo, sem no entanto, se auto-identificarem como gays. Homens que se masturbam em conjunto, homens que se “descaem” quando estão bêbedos, homens que, perante uma mulher, eram capazes de ter relações sexuais com outro homem se desempenharem o papel activo, homens que, a troco de dinheiro, fazem sexo com homens, considerando-se heterossexuais e que posteriormente, apesar de acharem mulheres mais desejável, acham agradável sexo com homens, homens que em universos masculinos fechados como prisões, quartéis militares ou seminários/colégios recorrem a sexo homossexual como “recurso na ausência de mulheres”. Essas são as condições necessárias para se defender que “todo o homem tem uma costela bi”, só que as mulheres encontram na admissão da sua experiência, homo ou bi, um sentimento generalizadamente fetichista e aceitável chegando muitas vezes a “inventar” na prática de tais actos e o homem esconde porque sabe que isso será visto como um atentado à sua virilidade e altamente rejeitável. É por isso que se dá a impressão que toda a mulher tem uma costela bi e os homens não.

Estes homens heterossexuais que, nas prisões, fazem sexo com outros homens enquadram-se na categoria dos pseudo-homossexuais, e os seus comportamentos homossexuais são muitas vezes designados como «actividades de recurso na ausência de mulheres». No entanto, os que falam de homossexualidade situacional esquecem que até mesmo numa prisão essas actividades podem ocorrer com forte envolvimento afectivo e que esses homens, bem como os jovens prostitutos masculinos, são capazes de reagir eroticamente a estímulos masculinos, com fortes erecções e abundante troca de carícias e beijos. Como demonstrou Alarid (2000), os homens bissexuais que preferem predominantemente mulheres e são sexualmente activos sentem-se menos seguros e mais pressionados pelos outros para fazerem sexo. Estas observações exigem que se dê mais atenção aos comportamentos homosociais e que se estude o seu papel ao longo da evolução humana, porquanto parecem apontar para um novo conceito de sexualidade de género masculino. Ao longo do tempo, verificámos que muitos prostitutos masculinos supostamente heterossexuais que fazem sexo com homens em troca de dinheiro começaram a fazer sexo grátis com homens que consideram atractivos e, mesmo que se casem mais tarde ou já sejam casados, não deixam de ter sexo com outros homens.


Joaquim Francisco Saraiva de Sousa (Extracto alterado da Tese de Doutoramento)

Esse facto de discrepância entre géneros deve-se fundamentalmente à sociedade machista em que (ainda) vivemos e a critérios heterossexistas que se prendem com a reprodução. Na Alemanha nazi, mais precisamente nos campos de concentração, os gays possuíam o triângulo rosa (que posteriormente se tornou um símbolo LGBT) ao passo que as lésbicas possuíam o triângulo negro. Porque é que, se ambos são homossexuais e logo pertencem à mesma categoria, considerada abjecta pelo regime fascista, não tinham o mesmo triângulo? Porque os gays já não tinham remédio quanto à procriação, enquanto as lésbicas poderiam procriar se fossem violadas porque para haver acto sexual não é preciso que elas fiquem excitadas, é só preciso que abram as pernas. Contudo, os gays nunca teriam uma erecção para efectuar a penetração com uma mulher, logo a reprodução estaria irremediavelmente perdida. Essa é a razão inconsciente para que a homossexualidade masculina, embora muito mais frequente e visível, seja também considerada mais inútil e estigmatizada do que a feminina que possui contornos de voyeur, de sexualidade de adorno. Basta ver na lei de muitos países que condenam o sexo gay e nada prevêem quanto ao sexo lésbico.

Repare-se na monstruosidade machista por detrás deste esquema onde a mulher é percepcionada como um mero objecto violável, sem direitos, em detrimento de uma dimensão colectiva: a espécie. Não é esse o mesmo pensamento retrógrado de quem apoia a lei, em vigor em muitos países árabes e africanos, que prevê a cisão do clítoris da mulher?


As mulheres têm uma costela bi porque os homens querem que elas tenham uma costela bi. Mas quem defende esta teoria tem obrigatoriamente que reconhecer: herdaram essa costela do homem, o Adão.

2 comentários:

João Roque disse...

Fabuloso texto, meu amigo; do melhor que já por aqui li.
Abraço amigo.

Má ideia! disse...

em relação ao pedacinho que precede"....basta ir a um bar gay (ou neste caso, LGBT)."

eu (bi) e as amigas (les) há muito que desejavamos uma sauna les, ou poder usar as gay (tipo....se não gostam, não olhem). Mas a entrada na segunda está vedada e a primeira não existe. Em barcelona, cidade muito mais desinibida e movimentada, experimentou-se fazer uma sauna les mas fechou. Qual a explicação que circula no senso comum? A maioria das mulheres encara a busca de sexo como algo !"masculino". Mas deixa-me rodar o mapa para vermos isto de outro ângulo.

A nossa cultura encara as mulheres como a excepção; gramaticalmente, são a excepção. Quando uma empresa de comunicações fornece um serviço "erotico", ie, pornográfico por telefone, escusa-se a classifica-lo como heterosexual ou masculino. Por definição, nesse caso como na literatura séria, o espectador é masculino. Uma mulher e um cão diz-se "eles". A identidade duma fêmea vive permanentemente numa hibridização com o masculino (não com o neutro, mas com o masculino), salvo num extremo onde só há feminino (e bichas e doidas).

No campo da sexualidade, penso ser necessario recordar que a nossa cultura (portuguesa, não ocidental. os nordicos até o fazem +/-) falha em conceber o sujeito mulher civilmente aquando da maternidade e continuam a não garantir a sua individualidade perante o estado e o trabalho, continuam a anexa-lo a um homem.
Por isso, a sexualidade da fêmea continua a carregar uma seriedade social (ficar desvalida em caso de gravidez) e continuam a haver virgens e putas.
Como o "onus da prova" recai sobre a mulher_face ao homem em questão em vez de face ao estado (pensão de alimentos VS equiparação ao mercado de trabalho)_, a cultura continua a achar-los livres, e pior, que as "nescias" são inferiores e podem ser castigadas por fazerem aquilo que eles mesmos fazem_por serem iguais numa situação social diferente.

Daí que haja uma cultura feminina em que o sexo deva vir acompanhado de provas de afectividade e confiança. Mais estranho é que as les vivam essa cultura.Em todo o caso, tratamento social a uma les "bicho" (como em bicha) é muito distinto de uma femme, mas ambos são caracterizados por alguma violencia, comum às heteros em certos territorios (de novo, os que estão fora da comunidade de entes queridos).

Pelo menos por cá, já sofri insultos por parte de gays, fazendo-me compreender que a minha presença nesse sítio era mal vinda, independentemente da minha orientação sexual mas não do meu sexo. Para não falar do mal entendido permanente de gostar de homens vaidosos que sabem que são carne (atitude tipicamente solicitada ao feminino, mas rarissima em homens de identidade hetero_mas não bi_mas que prontos, não passa de azares de caça).

Bem, espero ter deixado mais algumas perspectivas para o teu texto.

My point is:

Uma coisa são as pessoas com quem se faz sexo, a outra são as pessoas com que essas relações sexuais envolvem "custos" de confiança e comunidade. Outra ainda a orientação (a identidade: sou uma pessoa que faz x com y, e se fizer diferente já não sou isto que digo ser). A 1ª pode ser abrasiva, a segunda custosa, a terceira injusta. Ossos do oficio.

A costela bi, não duvido em TODA A GENTE. Mas a identidade é suficientemente importante para cada um de nós para que não admitamos os comportamentos sexuais que a desmentem, às vezes nem para nós mesmos.

Já isso dos originadores desse comentários costumam ser uns cordeiros em pele de lobos, que se vêem como livres (excessivos amantes da vida) e que são uns pobres complexados que infelizmente se tornam violentos quando confrontados com esse tal de excesso de verdade.