terça-feira, 10 de novembro de 2009

Casamento PMS e Casamento Polígamo: Lógicas diferenciadas


É muito comum nas discussões que envolvem a questão da homossexualidade, as pessoas que defendem uma postura reaccionária usarem determinado tipo de argumentos que já não são novos, e que menos novos são as suas significações de contra-argumentação.

Um dos argumentos mais populares (atrever-me-ia mesmo a dizer: populacho) é a colocação da homossexualidade, num grande saco, misturando-a com outras realidades sexuais, muitas delas paralifílicas, como a pedofilia, o incesto, a poligamia, a zoofilia, etc. Um bocadinho como acontecia com o equivocado conceito de sodomia (pecado/crime) que prevaleceu até finais do século XIX. E porquê essa colocação? Qual é a base deste raciocínio?

Para os reaccionários só existe uma regra moralmente válida de vivenciar a sexualidade. Aquele que se toma como exemplo e decorre de um modelo de sexualidade normativo e, portanto, um modelo, construído com base nas leis gerais, baseado na heterossexualidade (entre pessoas adultas), na monogamia e na exogamia - os três “pilares da sociedade” -, daí o tabu da homossexualidade (um tabu anacrónico e variável), da poligamia (um tabu variável mas não explícito) e do incesto (um tabu generalizado e raramente variável). Tudo o que extrapole esse modelo tem obrigatoriamente que estar na mesma categoria de (i)moralidade. Ou seja, toda a sexualidade alternativa/minoritária tem que se fundir numa mesma amálgama indiferenciada, como se o próprio modelo não fosse também desconstruível, como um todo ou isolado nos seus três critérios-base.

Começo por esclarecer: não acho que a sexualidade tenha como finalidade a reprodução biológica (embora ela seja importante numa perspectiva colectiva, universal, de continuidade do Estado/sociedade); por outro lado, qualquer pessoa que defenda que o sexo é apenas para procriar, creio estar a ser incoerente consigo mesmo/a. Também não acho que seja tudo relativo. Condeno o relativismo (sexual) mas sou apologista da relatividade (sexual), são coisas diferentes. Qual seria então as minhas “regras sexuais”? Aquelas que defendo, em grande escala, no que toca às vivências e relações sociais: relações baseadas no pressuposto da liberdade, desde que esta não afecte a liberdade dos/as outro/as. Partindo desse pressuposto:

Condeno a pedofilia porque estamos a retirar a liberdade de uma criança: a
liberdade de opção. E, mesmo que esta corresponda positivamente, não está na plena usufruição das suas capacidades psicológicas/morais para decidir o que é certo e errado, decidir sobre o seu corpo, sobre o seu sexo, etc. Uma criança é exactamente alguém com as suas especificidades. Mesmo para os/as homofóbicos/as mais radicais pode-se perguntar: considera a homossexualidade mais grave do que a pedofilia? A resposta parece ser consensual (a não ser, claro está, que eles/as desconheçam a diferença entre as duas, o que propositadamente lhes convêm, mas aí reformula-se a pergunta: considera que o sexo entre pessoas adultas do mesmo sexo é pior que o sexo entre um adulto e uma criança?);

Condeno a zoofilia pelos mesmos princípios acima mencionados com a diferença de que não é uma criança mas sim um animal. Não que a criança seja um animal, ou vice-versa, mas porque ambos gozam dessa especificidade que faz com que não estejam na plena usufruição das suas capacidades cognitivas (o animal muito menos porque nem sequer domina um modelo de linguagem simbolicamente e significadamente equivalente a ser humano);

Condeno o rapto e/ou violação pelos mesmos motivos anteriores.

Quanto à poligamia e ao incesto não condeno. Não afecta o princípio da liberdade sexual, não desaprovo. A nível pessoal é uma coisa, a nível da liberdade dos/as outros/as é outra.

Por essa razão sou contra o casamento pedófilo e o casamento zoófilo, aliás, ambos seriam ilegais já na sua base de legitimação. No entanto, não condenando a possibilidade de um casamento polígamo ou incestuoso, por mais que isso seja chocante. Mas ao legislarmos sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e ao compararmos estas realidades, estamos a dar uma ideia de vale-tudo que o conservador povo português desaprovaria imediatamente, numa ideia, que se poderia resumir na seguinte premissa: “se algo vai mudar, e é possível que conduza ao descalabro sócio-moral, mais vale o casamento estar como está, ou seja, entre um homem e uma mulher”.

Este poste do Pacheco Pereira assenta na relatividade do conceito de casamento (o argumento do vale-tudo) e eu passo a desconstruir. É exactamente esse argumento
que acho quase irredutível porque parecendo que não, é um argumento muito bom, mas como todo o pensamento, este têm peculiaridades que torna, no mínimo, equivocada a sua evocação. E quais são elas? Passo a enumerar:

As condições históricas (contingentes ou não) fizeram dos homossexuais um grupo identitário irrepreensível, de tal forma, que os polígamos não encontram essas condições necessárias. A forte repressão aos homossexuais, consubstanciada na criminalização, patologização, desqualificação, insulto, perseguição, ódio, agressão e crime de morte, deu-lhes uma estrutura identitária que lhes permitiu a politização adequada para reivindicar direitos, ao contrário dos polígamos. Os paneleiros e as fufas puderam assim fazer jus da sua discriminação e do seu preconceito para exigir (a sua) cidadania. Ora, quantos nomes pejorativos vocês conhecem para polígamos/as? Provavelmente 0. E para gays e para lésbicas? Suponho que cinquenta ou mais. Estão aí as condições necessárias para o facto de os homossexuais serem pioneiros na questão da liberdade sexual de sexualidades conceptualizadas como sexualidades alternativas. Sem dúvida, que poderemos equacionar a hipótese de usarmos essa estrutura identitária para polígamos/as mas seria, no mínimo, um equívoco. De qualquer forma, que sejam os/as polígamos/as a tratarem disso;
  • homossexualidade está patente no nosso corpo porque relaciona-se com uma estrutura sistemática de sexo/género. Através do meu corpo, com o (ónus da inversão) posso representar, simbolicamente, um homossexual, no entanto, não posso representar uma polígamo/a. Tal visibilidade contribui para, como já disse anteriormente, visibilizar o preconceito também;

• Relacionado com o primeiro ponto, temos o principio articulado da Constituição que não permite que ninguém seja discriminado em função da sua orientação sexual. A Constituição ao exprimir explicitamente esse critério torna equivoco o próprio conceito de casamento. E não estamos a falar de essências do conceito nem das suas suposições. Estamos a falar do conceito real nas suas asserções homem e mulher. E porque é que a Constituição passou a expressar o critério da orientação sexual como impeditivo para ninguém ser discriminado? Porque essa é a categoria histórica, tal como outras (“raça”, “religião”, “sexo”, etc), ao qual as pessoas têm sido gravemente e tradicionalmente discriminadas. Como referi no primeiro ponto, a discriminação social foi tanta (se bem se lembram o critério começou com a discriminação laboral nalguns estados dos E.U.A, e a pandemia da sida veio a agravar a questão), que os Estados tiveram que legislar sobre essa discriminação que tomou proporções de ódio. Ora, os polígamos/as nunca tiveram esse tipo de discriminação social. Por outro lado, ao reconhecer esse critério, automaticamente reconheceram a existência de homossexuais, bissexuais e transsexuais o que para os/as polígamos/as tal reconhecimento não é passível de se processar;

• Relacionado com o último ponto: imaginemos que os polígamos são discriminados. Que critério poderíamos usar para protegê-los? A designação “orientação sexual” seria um erro pois a poligamia não é uma orientação mas sim uma prática consciente que assenta em opções convictas. Por outro lado, “orientação sexual” implica um desejo por UM dos sexos (homem e mulher) o que não permite a abrangência da poligamia na sua conceptualização. Poderíamos usar o termo “opções” mas isso implicaria que considerássemos a zoofilia uma opção, por exemplo;

• Outra questão que as divide é a especificidade local de ambas e a sua aceitação inversamente proporcionais, isto é, os países que mais reprimem a homossexualidade (países muçulmanos, por exemplo) são os países que incitam à poligamia e os países que mais toleram a homossexualidade são os países que mais reprimem a poligamia (países ocidentais). Porquê? Por razoes logísticas/estruturais que se referem exactamente ao próximo ponto;

• Quando os reaccionários defendem o casamento tradicional (homem + mulher) separando-o do casamento PSM justificam-se com o facto da possibilidade de reprodução biológica ser só possível no primeiro e não operacional no segundo (como casal monogâmico). Ora, aquilo que eles tanto defendem acaba por ser o seu ponto de ruptura quando, por exemplo, evocam a possibilidade do casamento polígamo, para “desmoralizar” o casamento PSM. Porquê? Porque o casamento polígamo representa MAIS hipóteses de reprodução. Por outro lado, dá também a sensação que os próprios reaccionários estão a defender o casamento polígamo, o que se pode traduzir numa má imagem para a direita. Apetecia mesmo não discutir a questão do casamento PMS e defender o direito ao casamento polígamo e perguntar aos reaccionários: e agora? Defendam o casamento monogâmico (será que utilizariam o argumento da reprodução?!);

• Existe uma impossibilidade de determinamos a origem exacta da homossexualidade (nem faz muito sentido, politicamente) mas podemos concluir que esta seja automática, inconsciente, mecânica, (aliás, tal como a heterossexualidade), ao passo que a poligamia é, sem dúvida, fruto da noção psicológica (qualquer pessoa pode ser polígama porque todos/as nós temos uma atracção multidireccional mas nem toda a gente pode ser homossexual) e fruto de um espectro cultural o que a torna, não numa orientação, mas sim numa prática, ora, as práticas são mutáveis. Isto é, não podemos obrigar um homossexual a sentir desejo heterossexual mas podemos mudar o exercício de concepção de relações de um polígamo (e isso não o conduzira a uma revolta identitária porque nem sequer reprimido, social e legalmente, ele é). A própria questão daquilo que é natural é um equívoco. Porquê? Segundo os reaccionários, a heterossexualidade é natural a homossexualidade não. Ora, a poligamia sempre é mais natural do que a monogamia que é instituída – vejam o caso da maior parte dos animais, e eu bem sei que os há monogâmicos. Agora depende que de espécie estamos a falar e de qual mais convêm;

• O argumento mais forte. Nós sabemos que a lei separa o direito do casamento do direito de construir uma família mas sabemos também (aliás, através dos argumentos dos reaccionários) que simbolicamente não são realidades amorfas nem distantes uma da outra (nem que seja através das práticas sociais verificadas). A minha questão é: que estruturas familiares oferece uma comunidade (note-se que até o conceito de casal é obscuro) polígama? Será uma comunidade uma família? A quem as crianças chamariam mãe, pai? A própria existência múltipla dos parentes produziria na criança uma confusão tal que não faz sentido. Se o casamento polígamo é permitido então quer dizer que TODAS as pessoas do mundo se podem casar com TODAS as pessoas do mundo? – A questão da externalidade - (embora essa possibilidade seja tão estapafúrdia como dizer que o casamento PMS vai tornar as pessoas todas homossexuais). Em suma: um casal gay (ou um casal lésbico) apresenta melhores condições para educar uma (ou várias) criança (s);

• Existe uma disfuncionalidade relativa à idade técnica e ao sexo no casamento polígamo. Passo a explicar: o casamento polígamo poria em causa a igualdade entre sexos porque a própria poligamia advém de um sistema masculinista e patriarcal, razão pela qual a poligamia de um homem com várias mulheres seja esmagadoramente mais comum e isso ameaçaria a igualdade entre homens e mulheres (possessão). Em relação à idade, surgiria uma situação idêntica;

Em Direito discute-se um assunto de cada vez. De qualquer forma, repito, que sejam os/as polígamos/as a tratarem disso.

Em jeito de conclusão deixo-vos um pequeno excerto de texto do Miguel Vale de Almeida (ISCTE e CRIA) apresentado no Congresso APA de 2009 na Sessão Plenária “Lógicas do Poder” onde este tecia algumas considerações sobre a Teoria Queer:



« (…) ma delas é a crítica à monogamia, apresentando a questão da poliamoria como parte do seu programa de transformação cultural (a poliamoria descreve arranjos amorosos com mais de um parceiro, em mútuo consentimento e sem projecto de fidelidade). Ora, a poliamoria não é, a meu ver, um problema do movimento social LGBT nem de nenhum outro, porque a poliamoria apresenta-se como uma escolha de estilo de vida, uma opção por um determinado tipo de valores nas relações amorosas. Não se apresenta como uma reivindicação política de mudança legislativa ou de direitos. Tal seria verdade se se tratasse de poligamia, a qual tem uma dimensão jurídica. Ora, não havendo uma reivindicação poligâmica (que, a haver, essa sim seria, e bem, contrariada, pois o mútuo consentimento não seria o suficiente para apaziguar o receio de desigualdades de género profundas), há, sim, o perigo de uma leitura social e mediática – errada, claro, mas não menos perniciosa por isso – da poliamoria como poligamia, prejudicando o que alguns (por exemplo, eu) acham prioritário porque mais próximo de ser conseguido. Deixo de lado, por espúria, a questão de a poliamoria pouco ter de verdadeiramente novo, mesmo no campo da crítica cultural: basta pensar-se no libertarismo sexual dos projectos de socialismo utópico do século XIX, do radicalismo sexual de Reich e outros no século XX ou, dando um salto no tempo, no Maio de 68. Do ponto de vista da abertura do possível, da crítica cultural que demonstra existir outras formas de viver, claro que a poliamoria tem valor político. Mas tratando-se de uma escolha ética no campo das relações amorosas nada tem a ver com uma agenda de transformação das condições de cidadania. Muito menos pode servir para alienar quem, no usufruto do direito a escolher, queira seguir outros modelos relacionais (…)»






3 comentários:

João Roque disse...

Texto muito bom.
Parabéns!!!!

Manuel Marques Pinto de Rezende disse...

caro Casado de Fresco,

li este seu texto para lhe poder dar uma resposta ao seu comentário no Café Odisseia.

Os conteúdos no seu blogue parecem muito aversos a algumas instituições como a ICAR, e a algumas pessoas como os reaccionários. Penso que há grande injustiça nesses argumentos.


Primeiro, porque a ICAR adopta muitas vezes posições progressistas em relação a medidas sociais e até políticas. Nesta questão adoptou uma posição que me parece correcta, de preservar o carácter de um instituto jurídico. Já escrevi sobre isto noutro sítio, aponto-lhe o link para que possa ver, com mais atenção, os meus argumentos.

Agora, comentando o seu texto:

É, de facto, populacho confundir homossexualidade com pedofilia. Um adulto pode agir de acordo com as suas inclinações sexuais que a sociedade só pode ter isso em conta como algo da sua responsabilidade. Obviamente, uma criança merece uma protecção especial. Por isso é que já antes de nascer se protege os direitos das crianças (os direitos dos nascituros, para ser mais correcto). Ou pelo menos costumava ser essa a forma de pensar das nossas leis. Agora já não sei.

Quanto à zoofilia, parece-me também uma conduta ofensiva, capaz de lesar os animais. Não me parece que legalizar o casamento entre um homem e uma cabra é algo a levar a sério.

O erro do seu casamento é pensar que os institutos jurídicos são como a Lux, estão lá para se divertir por um pouco. No casamento não se regula o amor nem a orientação sexual. O próprio Tribunal Constitucional já considerou que não há nenhuma violação do princípio da igualdade.

No entanto, se há um grupo de interesse que pretende perverter esse instituto, com os seus objectivos e a sua agenda política, não se pode perverter também o sentido da lei.

Até agora, o casamento estava entregue a uma definição, a união entre um homem e uma mulher. Não há uma menção a homo ou heterossexualidade.
Agora que se cria um clube jurídico para os homossexuais (isso sim uma discriminação) é preciso reanalisar as coisas.

Se três adultos desejam unir-se, o amigo Casado de Fresco, do alto da sua concepção de moral (sim, você é que é o moralista, você é que quer transportar uma moral para algo que era moralmente inócuo), bem pode andar por aí a dizer que as senhoras são discriminadas por partilhar o mesmo senhor.
Se três pessoas responsáveis pretendem unir-se, então, a validade para tal é a mesma que a usada para a união de duas pessoas.

Só a pura coação bloquista, tão viva no interior dos "movimentos" gay, é que é capaz de considerar que o Estado tem o dever de proibir 3, 4 ou 5 pessoas a fazerem o que quiserem com elas próprias.

Não há razão nenhuma para se abrir o casamento a uns poucos para continuar a fechá-lo a outros poucos.

Manuel Marques Pinto de Rezende disse...

tem aqui o texto que eu lhe proponho ler:

http://cafeodisseia.blogspot.com/2009/12/casamentoh.html