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A praxe e o guardador de rebanhos
A praxe e o guardador de rebanhos
O dia em que escrevi estas linhas foi marcado por um sonho que me fez acordar num misto de susto e de namoro ao novo sol, o qual entrava pela janela com a sua vagarosa calma. Gostaria de poder elaborar para vocês uma estória desse tal episódio onírico, mas há em mim uma especial habilidade para “esquecer” (quase) tudo o que os olhos fechados mostram. Sei apenas que, em dada altura, entre o início e o fim, um bando de gatos laranjas, juntamente com uma cabritinha, desataram a fugir de uns enormes cães pretos enraivecidos…
Mas pronto. Aqui o assunto parece ser outro. Desde há algum tempo para cá que dialogo com as minhas cabritas sobre o porquê da adesão à praxe num país como este. Ao questionar os alunos desta vossa «casa» sobre o porquê de contribuírem com a sua participação, avistei, com os cinco sentidos, as festas, os jantares, as amizades, a vida académica, e por aí a fora. Está certo! Todos gostamos de ter amigos e de ser convidados para festas. Isto é, poucos gostam de ficar de fora, e os que ficam, não raras vezes, fazem-no por um misto de vaidade e de desprezo – certamente pelo preto que por aí anunciam que saiu de moda.
No entanto, achei por bem também questionar esses indivíduos vaidosos com padrões estéticos diferentes. Logo me tentaram convencer de que, para além da tal vida académica, a praxe não seria mais do que um jogo (de dominação), no qual os novatos se submetem aos caprichos e às ideias mais ou menos criativas dos alunos dos outros anos. Aparentemente, tudo estaria explicado: aqueles que mais valorizavam a sua liberdade ficavam de fora; quem estivesse mais interessados em desenvolver a sua vida social entrava de cabeça. Estando isto colocado de forma extremamente simples, logo se percebe uma falha: hoje toda a gente coloca a liberdade no topo da hierarquia, mesmo aqueles que não sabem quantas letras tem. E, de qualquer modo, os novatos escolhem aderir, não são obrigados.
Se fosse um jogo de futebol, era um empate com uma arbitragem extremamente duvidosa. Mas dizem-me que são muitos os que entram na praxe e poucos os que ficam de fora, sendo a vossa faculdade uma excepção – em termos de vaidade, entenda-se. E como aqui não há «fruta» para “botar” a derrota na casa alheia, terá de haver prolongamento.
Fui ruminando estas cousas na cabeça. Sempre que levava as cabritas lá pelo monte atrás de casa do Belmiro, aparecia-me o assunto na cabeça. Foi numa dessas idas que uma delas, mais concretamente a Albertina, resolveu interromper os meus desabafos e saiu-se com esta:
- Nem tudo o que é branco é leite! (mééé)
O que, no senso comum mais terra à terra das cabritinhas se assemelha ao nosso «nem tudo o que luz é ouro». Então, seguindo o conselho da Albertina e olhando de longe (lá de cima do monte, donde tudo se vê e onde as aparências se diluem), apercebi-me de uns factos estranhamente esclarecedores: tinham-me dito que na praxe existem madrinhas e padrinhos, avós e avôs, manas e manos, tias e tios, enfim, uma verdadeira família. Ainda por cima, sem proibições chatas como o incesto ou as horas de ir para a cama! Bendita cabrita! Afinal – exclamei eu, num discurso emocionado perante o rebanho –, a praxe joga com profundas constelações afectivas, com vinculações criadas ao longo de dezoito aninhos de amamentação física e psicológica. Joga até com instintos reprimidos, permitindo que eles saltem cá para fora. Se calhar, disse eu, a praxe até é terapêutica: fazem-se amigos, aprende-se a comunicar e, ainda por cima, suaviza-se o censor do ego. Mas cedo perdi o entusiasmo. Quando olhei de perto, vi que todas essas tias e avós e madrinhas não eram levadas muito a sério. Embora fosse mais do que uma simples brincadeira, não fugia muito a esse registo.
Mas então, o que é que é levado a sério na praxe? O que é essencial? Bolas, que estava mesmo à frente do cajado: o poder!
- É isso – disse alegremente a uma cabritinha que acreditava que a psicanálise era a resposta para tudo, enquanto eu a ordenhava –, os caloiros, colocando-se numa situação de plena dependência, fantasiam mais ou menos conscientemente com uma regressão às primeiras fases do desenvolvimento psicossexual. Pobrezinhos, estão naquela idade em que querem ser adultos e responsáveis, mas ao mesmo tempo têm medo e, nesse medo, nessa vontade de voltar para o colo da mamã, desejam com todas as forças ser crianças de novo. E é vê-los ali, enfileirados, de olhos no chão, alguns desejosos por se mostrarem bons meninos, outros, mais irreverentes, contentes por se mostrarem diferentes e se atreverem a quebrar uma ou outra regra (mééé)… Vê lá tu: os bebés vêem no bico da cegonha, e estes chegam de pára-quedas!! Tal igual.. (mééé)!
- Mas a praxe não é só feita de caloiros, cabritinha adorável! Ouve o teu José, que falou com essas pessoas, e elas dizem que a praxe é muito mais do que os caloiros vêem.
- «Ihh que burro»! Oh José, tu nem digas que és meu pastor. Dos outros – os de preto -, é mil vezes mais fácil de explicar. Primeiro é a vontade de poder. Depois, enquadra-se perfeitamente na fantasia regressiva dos caloiros: primeiro voltam a ser bebezinhos indefesos. No segundo ano, passam à infância, e já podem fazer birras, mas não mandam em ninguém. Vê lá que até lhes chamam os semi-putos! E depois dos “semi”, vêm os putos por inteiro. Esses são já os adolescentes, a caminho de se tornarem adultos. Podem fazer o que lhes der na tola, mas ainda têm de ouvir dos “cotas” de quatro ou mais matrículas. Ser adolescente não é um mar de rosas! Por fim, nos quarto e quinto anos, tens os adultos, carinhosamente designados por doutores de merda e merda de doctores, o que é uma excelente metáfora para os actuais homens e mulheres afundados no mercado de trabalho (méeé – risinhos estridentes)!...
- Epah, mas afinal a praxe até desempenha uma função útil – exclamei eu, num misto de confusão e paralisia cerebral –, dá confiança aos estudantes e mostra-lhes que é melhor ser independente do que ser criança toda a vida.
Aí, a minha cabrita freudiana falou com uma fúria que eu lhe desconhecia.
- Já não basta seres meu pastor, ainda tens que abrir a boca? Olha que qualquer dia fazemos todas greve… Por muito bonita que a praxe possa parecer, não passa de um deslocamento das forças naturais desses jovens para uma fantasia, a qual esconde, na apologia das amizades, os seus valores ruins e comportamentos duvidosos. E não me venhas com a treta de que essas «relações interpessoais» são de importância fundamental para o desenvolvimento psicológico. Amigos já se fazem sem sair de casa. São os apelos à conformidade, à uniformidade – no pior sentido da palavra – e à obediência que revelam o seu verdadeiro carácter nivelador. Só tu para me dizeres que a praxe forma pessoas responsáveis (méérrrrgghhh)…
Aí eu calei-me, não por concordar, mas por medo. E por medo não percebi o que a cabritinha me disse. Só um pastor sabe do que as cabritas são capazes. Logo, escrevi aqui, para que me pudessem explicar. Nos dias seguintes, ela ainda me foi dizendo, no seu falar melífluo, que tudo se encaixava na perfeição: que o nosso Portugal, embora latino, ainda mostrava as cicatrizes do fascismo, nomeadamente no papel da mulher, no valor da família e do seu chefe…Que a diferença de vivências entre as gerações criava um mundo à parte, o qual caberia aos jovens, entregues aos seus instintos e à sorte, esculpir e dar forma; e, a partir dessa falta de contacto e transmissão de saberes, não só se geravam sentimentos de insegurança, como se esfumava o que ainda restava do respeito pelos mais velhos, sendo esse respeito deslocado para o grupo de pares… Escusado será dizer que, se não percebi em que consistia a primeira argumentação, também não percebi estes “anexos”.
Enfim, acho mesmo que esta cabrita devia mastigar mais a erva que come. Está tão magrinha. E depois aquele estado de saúde débil afecta-lhe os nervos… Mas isso sou eu que acho… Aliás, eu não acho nada, para além do pasto das minhas cabritas e das suas tetinhas. Mal me pus a pensar noutras cousas, levei logo três marradinhas que me deixaram todo “derreado”. É caso para dizer que «nem só de pasto» vivem as cabras.
.
Encarecidamente,
José “das Cabras”
P.S.: Desculpem-me caros leitores pelos possíveis erros ortográficos que este texto possa conter. Tal fica-se provavelmente a dever ao facto de o mesmo ter sido escrito por um bu*** de um caloiro, enquanto eu, sentado em cima das costas do mesmo, lho ditava.
E assim acontece
Futuro título: O sexo e a cantina Jomaze (patrocínio)
Mas pronto. Aqui o assunto parece ser outro. Desde há algum tempo para cá que dialogo com as minhas cabritas sobre o porquê da adesão à praxe num país como este. Ao questionar os alunos desta vossa «casa» sobre o porquê de contribuírem com a sua participação, avistei, com os cinco sentidos, as festas, os jantares, as amizades, a vida académica, e por aí a fora. Está certo! Todos gostamos de ter amigos e de ser convidados para festas. Isto é, poucos gostam de ficar de fora, e os que ficam, não raras vezes, fazem-no por um misto de vaidade e de desprezo – certamente pelo preto que por aí anunciam que saiu de moda.
No entanto, achei por bem também questionar esses indivíduos vaidosos com padrões estéticos diferentes. Logo me tentaram convencer de que, para além da tal vida académica, a praxe não seria mais do que um jogo (de dominação), no qual os novatos se submetem aos caprichos e às ideias mais ou menos criativas dos alunos dos outros anos. Aparentemente, tudo estaria explicado: aqueles que mais valorizavam a sua liberdade ficavam de fora; quem estivesse mais interessados em desenvolver a sua vida social entrava de cabeça. Estando isto colocado de forma extremamente simples, logo se percebe uma falha: hoje toda a gente coloca a liberdade no topo da hierarquia, mesmo aqueles que não sabem quantas letras tem. E, de qualquer modo, os novatos escolhem aderir, não são obrigados.
Se fosse um jogo de futebol, era um empate com uma arbitragem extremamente duvidosa. Mas dizem-me que são muitos os que entram na praxe e poucos os que ficam de fora, sendo a vossa faculdade uma excepção – em termos de vaidade, entenda-se. E como aqui não há «fruta» para “botar” a derrota na casa alheia, terá de haver prolongamento.
Fui ruminando estas cousas na cabeça. Sempre que levava as cabritas lá pelo monte atrás de casa do Belmiro, aparecia-me o assunto na cabeça. Foi numa dessas idas que uma delas, mais concretamente a Albertina, resolveu interromper os meus desabafos e saiu-se com esta:
- Nem tudo o que é branco é leite! (mééé)
O que, no senso comum mais terra à terra das cabritinhas se assemelha ao nosso «nem tudo o que luz é ouro». Então, seguindo o conselho da Albertina e olhando de longe (lá de cima do monte, donde tudo se vê e onde as aparências se diluem), apercebi-me de uns factos estranhamente esclarecedores: tinham-me dito que na praxe existem madrinhas e padrinhos, avós e avôs, manas e manos, tias e tios, enfim, uma verdadeira família. Ainda por cima, sem proibições chatas como o incesto ou as horas de ir para a cama! Bendita cabrita! Afinal – exclamei eu, num discurso emocionado perante o rebanho –, a praxe joga com profundas constelações afectivas, com vinculações criadas ao longo de dezoito aninhos de amamentação física e psicológica. Joga até com instintos reprimidos, permitindo que eles saltem cá para fora. Se calhar, disse eu, a praxe até é terapêutica: fazem-se amigos, aprende-se a comunicar e, ainda por cima, suaviza-se o censor do ego. Mas cedo perdi o entusiasmo. Quando olhei de perto, vi que todas essas tias e avós e madrinhas não eram levadas muito a sério. Embora fosse mais do que uma simples brincadeira, não fugia muito a esse registo.
Mas então, o que é que é levado a sério na praxe? O que é essencial? Bolas, que estava mesmo à frente do cajado: o poder!
- É isso – disse alegremente a uma cabritinha que acreditava que a psicanálise era a resposta para tudo, enquanto eu a ordenhava –, os caloiros, colocando-se numa situação de plena dependência, fantasiam mais ou menos conscientemente com uma regressão às primeiras fases do desenvolvimento psicossexual. Pobrezinhos, estão naquela idade em que querem ser adultos e responsáveis, mas ao mesmo tempo têm medo e, nesse medo, nessa vontade de voltar para o colo da mamã, desejam com todas as forças ser crianças de novo. E é vê-los ali, enfileirados, de olhos no chão, alguns desejosos por se mostrarem bons meninos, outros, mais irreverentes, contentes por se mostrarem diferentes e se atreverem a quebrar uma ou outra regra (mééé)… Vê lá tu: os bebés vêem no bico da cegonha, e estes chegam de pára-quedas!! Tal igual.. (mééé)!
- Mas a praxe não é só feita de caloiros, cabritinha adorável! Ouve o teu José, que falou com essas pessoas, e elas dizem que a praxe é muito mais do que os caloiros vêem.
- «Ihh que burro»! Oh José, tu nem digas que és meu pastor. Dos outros – os de preto -, é mil vezes mais fácil de explicar. Primeiro é a vontade de poder. Depois, enquadra-se perfeitamente na fantasia regressiva dos caloiros: primeiro voltam a ser bebezinhos indefesos. No segundo ano, passam à infância, e já podem fazer birras, mas não mandam em ninguém. Vê lá que até lhes chamam os semi-putos! E depois dos “semi”, vêm os putos por inteiro. Esses são já os adolescentes, a caminho de se tornarem adultos. Podem fazer o que lhes der na tola, mas ainda têm de ouvir dos “cotas” de quatro ou mais matrículas. Ser adolescente não é um mar de rosas! Por fim, nos quarto e quinto anos, tens os adultos, carinhosamente designados por doutores de merda e merda de doctores, o que é uma excelente metáfora para os actuais homens e mulheres afundados no mercado de trabalho (méeé – risinhos estridentes)!...
- Epah, mas afinal a praxe até desempenha uma função útil – exclamei eu, num misto de confusão e paralisia cerebral –, dá confiança aos estudantes e mostra-lhes que é melhor ser independente do que ser criança toda a vida.
Aí, a minha cabrita freudiana falou com uma fúria que eu lhe desconhecia.
- Já não basta seres meu pastor, ainda tens que abrir a boca? Olha que qualquer dia fazemos todas greve… Por muito bonita que a praxe possa parecer, não passa de um deslocamento das forças naturais desses jovens para uma fantasia, a qual esconde, na apologia das amizades, os seus valores ruins e comportamentos duvidosos. E não me venhas com a treta de que essas «relações interpessoais» são de importância fundamental para o desenvolvimento psicológico. Amigos já se fazem sem sair de casa. São os apelos à conformidade, à uniformidade – no pior sentido da palavra – e à obediência que revelam o seu verdadeiro carácter nivelador. Só tu para me dizeres que a praxe forma pessoas responsáveis (méérrrrgghhh)…
Aí eu calei-me, não por concordar, mas por medo. E por medo não percebi o que a cabritinha me disse. Só um pastor sabe do que as cabritas são capazes. Logo, escrevi aqui, para que me pudessem explicar. Nos dias seguintes, ela ainda me foi dizendo, no seu falar melífluo, que tudo se encaixava na perfeição: que o nosso Portugal, embora latino, ainda mostrava as cicatrizes do fascismo, nomeadamente no papel da mulher, no valor da família e do seu chefe…Que a diferença de vivências entre as gerações criava um mundo à parte, o qual caberia aos jovens, entregues aos seus instintos e à sorte, esculpir e dar forma; e, a partir dessa falta de contacto e transmissão de saberes, não só se geravam sentimentos de insegurança, como se esfumava o que ainda restava do respeito pelos mais velhos, sendo esse respeito deslocado para o grupo de pares… Escusado será dizer que, se não percebi em que consistia a primeira argumentação, também não percebi estes “anexos”.
Enfim, acho mesmo que esta cabrita devia mastigar mais a erva que come. Está tão magrinha. E depois aquele estado de saúde débil afecta-lhe os nervos… Mas isso sou eu que acho… Aliás, eu não acho nada, para além do pasto das minhas cabritas e das suas tetinhas. Mal me pus a pensar noutras cousas, levei logo três marradinhas que me deixaram todo “derreado”. É caso para dizer que «nem só de pasto» vivem as cabras.
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Encarecidamente,
José “das Cabras”
P.S.: Desculpem-me caros leitores pelos possíveis erros ortográficos que este texto possa conter. Tal fica-se provavelmente a dever ao facto de o mesmo ter sido escrito por um bu*** de um caloiro, enquanto eu, sentado em cima das costas do mesmo, lho ditava.
E assim acontece
Futuro título: O sexo e a cantina Jomaze (patrocínio)
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