quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Até 2000 viverás, de 2000 não passarás (e entretanto passaram-se 10 anos)



Os argumentos ad terrorem, isto é, os argumentos de cariz “apocalíptico”, deitam por terra qualquer hipótese de um determinado esquema argumentativo se mostrar, minimamente, válido. Os argumentos apocalípticos misturam alhos com bugalhos e, ao utilizarem outras cambiantes para criar uma profecia tenebrosa, põem em causa a mesma norma que visam proteger a todo o custo.

Estes tipos de argumentos são muito utilizados, por exemplo, na questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, onde se mistura homossexualidade com incesto, pedofilia ou poligamia, mas não só. São utilizados para denegrir, por exemplo, o sistema de ensino português (“hoje os jovens não aprendem nada, no meu tempo é que era”) ou para, estimular uma atitude reaccionária, por exemplo, contra a droga ou contra a criminalidade, elaborando um esquema que permita às pessoas se insurgirem contra algo (que não sabem muito bem), accionando um “instinto” preventivo (“hoje é só drogas e ladrões”). No caso do exemplo do consumo de droga/criminalidade, as estatísticas são utilizadas como instrumento para acção do espírito conservador/reaccionário e, normalmente, aparecem descontextualizadas (por exemplo, no caso do ensino, as taxas de sucesso escolar durante o período salazarista eram mais elevadas, sim, era um facto, mas porquê? Porque só uma elite, que tinha poder económico/simbólico, é que poderia aceder à escola, uma escola, per si, elitista e altamente distributiva).

O termo “apocalipse” deriva, genericamente, do vocabulário da própria religião e na religião, este refere-se ao destino inevitável da Humanidade que virá um dia (quando? Esteve para vir em muitos momentos da História e nas história...).

Escusado será perguntar qual a instituição/ideologia que patrocinou esse tipo de mecanismo do medo, não é verdade? Basta nos lembrarmos que o lobby católico, em plena época clássica, se aproveitou das invasões bárbaras para se fazer vingar como A Ideologia a seguir. Sim, a ICAR começou por ser um lobby e durante toda a Idade Média intoxicou o pensamento europeu e não contente, infeccionou também outros povos, outras culturas, outras formas de ser/estar/pensar/fazer.

Este “esquema de medo” não poderia ser efectivo se não agisse contra indivíduos de carne e osso ou grupos, normalmente, minoritários. São chamados os escape goats (bodes expiatórios – e note-se que a própria palavra “expiatório” está ligada à religião: expiar = purificar). Minorias étnicas/sexuais foram, ao longo da História, os escape goats da ICAR. “Estes imigrantes vêm para cá roubarem os nossos empregos”, diz-se em plena crise. “É só bichas! De caminho, mundo acaba”, diz-se enquanto se discute o casamento entre PMS. “As mulheres, hoje em dia, é que traem os maridos. Tristeza!”, ouvimos constantemente.

Associado à elaboração de um inimigo comum, normalmente minoritário e contra-normativo, existe aquilo que eu chamo de “apagão”. Isto é, a purificação higienista e/ou eugenista, precisa de eliminar o desvio para que a norma se assuma como regra/lei geral inviolável. Muitas pessoas, durante o período salazarista, foram mandadas para MITRAS, exactamente para se manterem escondidas da sociedade e não a ameaçarem. Ao permaneceram inacessíveis, longe dos olhares, colaboram para a visibilidade total(itária) que a norma necessita para se manter intacta. Acham que existiam violadores enquanto Salazar governava? Claro que existiam. Mas Salazar fazia tudo para os ocultar e dai dar a sensação que “isto devia ser tudo como no tempo de Salazar!”. A forma mais drástica de “apagão” são as afirmações sobre a inexistência do Holocausto, ou mais recentemente, com os problemas ecológicos (aquecimento global, derretimento de glaciares, consumo de combustíveis), por exemplo.

Estes esquemas de medo são utilizados, quase sempre, em situações sui generis. Ou quando a sociedade passa por períodos em que existe o risco (ou sensação de risco) de pânico moral, nomeadamente, crises económicas ou de valores, choques culturais, etc, [perturbação normativa aleatória] ou então, em casos de mudanças que se produzam, na alteração de leis/costumes e que, portanto, há a urgência de debate [perturbação normativa obrigatória], por exemplo, a implementação de novas tecnologias (computador, telemóvel, internet, Magalhães), legalização do aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.

Penso (e esta é a minha opinião pessoal, assumida, tal como o autor) que convêm que tenhamos sempre um espírito crítico, reflexivo e desconstrutor. Modernista diriam alguns/as. Sim, modernista. Mas do que isso, pós-modernista. Saber que não existe uma explicação unicausal para uma determinada realidade. Saber que os conceitos não são fixos mas sim, mutáveis assim como as realidades que os suportam. Saber que o próprio saber não pode estar amarrado a ideologias nem a pressões, por mais utópico que possa soar. Saber que a norma é uma contingência e ironia das ironias, nela, como diria Foucault, «é que está a nossa emancipação».

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