Quando falo, nalguma apresentação de trabalhos, sobre os direitos das mulheres tenho a sensação que o público que me ouve olha-me como se fosse um rochedo anacrónico e/ou um pseudo-libertário que pensa que está a dizer meia dúzia de coisas vanguardistas que, na verdade, são passadas. E, o mais estranho, é que tenho essa sensação quando o “meu” publico é, essencialmente, feminino. Parece-me (será talvez uma impressão preconcebida e portanto o problema seria meu, o que não invalida o facto desse sentimento já existir e merecer alguma atenção…) que as mulheres me olham com essa atitude tão reticente precisamente porque o campo político dos «direitos das mulheres» é algo já ultrapassadíssimo e nem sequer deveria merecer atenção (tirando os graves índices de violência doméstica e as inconcebíveis discrepâncias salariais, ambos vitimizando as mulheres). Há igualdade perante a lei, basta! Até que, em inícios da segunda década do século XXI (o século proclamado estrategicamente e no senso comum como o século progressista) vemos países como o Irão a condenarem uma mulher ao apedrejamento por crime de adultério. Poder-se-ia pensar que tal facto não perturbaria a «sociedade ocidental» (detesto a falácia da categoria mas usou-a propositadamente por questões de essencialismo intelectual); Ora, puro engano! Perturbou e perturba. São países e partidos políticos (como o PS) a exigirem a revisão penal do crime do adultério, alguns (mais tímidos) ficam-se pela defesa de uma pena mais leve, são sites iranianos a chamarem a primeira-dama francesa, Carla Bruni, de prostituta, um sem número de manifestações da sociedade civil contra tal acto. Bem, parece que houve um aparato político e civil sobre esta questão que abrange duas dimensões importantes. A primeira – e mais visível – a questão dos direitos das mulheres (sim, porque o crime de adultério, na sua generalidade, é mais grave quando o sujeito criminoso é uma mulher), a tal dimensão anacrónica, vista pelo olhar das raparigas da «sociedade ocidental» - o "meu" público; e uma outra dimensão, mais subliminar que se prende exactamente com o imanente conflito dístico entre «sociedade ocidental/sociedade oriental», ou mais especificamente, «ocidente versus muçulmanos/as». Isto é, uma nova Guerra Santa (iniciada, embora não oficialmente, no fatídico 11/09/01 e sem fim à vista), uma nova Cruzada contra os mouros. A Cruzada 2.0.
Pensava-se que depois de duas Guerras Mundiais e uma potencial (a Fria), chegaríamos então a um novo consenso político mundial onde as guerras não teriam mais lugar e a paz seria mantida, no mínimo, por uma constante negociação (e às vezes lambe-botismo), pois as consequências dessas Guerras tinham sido letais. Seria, na perspectiva positivista, o advento de uma nova Civilização. Obvio que podemos considerar aquelas pequenas guerras que assolam alguns territórios, de cariz étnico (exemplo da Rússia) mas universalmente (e excepções feitas ao eterno conflito Israelo-árabe e os constantes updates da guerra EUA-Iraque), Guerra, na sua asserção macroscópica, seria uma realidade inexistente, ou quanto muito, indesejada. Outro erro! A Guerra, porque cumpre requisitos de mobilização de dinheiros, financiamentos e simbolismos (veja-se as constantes corridas ao armamento – Irão, China, Coreia, EUA, etc), é uma necessidade das superpotências (e até aqui não direi nada de novo) para se fazerem valer no mapa-mundis, lugar de disputas incontornáveis. Na última década duas características a vão marcar: a intensificação do seu simbolismo e novas estratégias e dispositivos de ataque/defesa (os vírus, as novas tecnologias - Google Earth, por exemplo -, os caça automáticos, etc). É no primeiro plano, fundamentalmente, que se situa o conflito latente (e expresso em algumas ocasiões como no exemplo holandês dos cartazes de Maomé) mundializado da Guerra «ocidente versus muçulmanos/as». A «ciganofobia» é um dos seus sintomas pois, em muitos aspectos culturais ciganos/as e árabes, partilham do mesmo regime de práticas e imagéticas (o patriarcado, determinada noção de família, o estereotipo visual, algum nomadismo, etc). Ser a França (pais de tradição liberal e ex-libris no que toca às questões de alguns direitos civis – em matéria de casamento entre pessoas do mesmo sexo nem por isso – como núcleo duro representativo daquilo que se entende como “a Democracia”) a estar na linha da frente da xenofobia («ciganofobia» incluído) e a erguer o batalhão contra os mouros é, no mínimo, paradoxal. Mas não deixa de ser curioso que, como exemplo disso, tenha sido a primeira nação europeia a proibir o uso do véu (simbolismo da repressão patriarcal às mulheres – d’acorde – mas simultaneamente representativo da cultura árabe). Aqui entra uma perspectiva interessante: como ser-se libertário no plano dos costumes sem se cair na xenofobia (ciganofobia e islamofobia) de vão de escada? A «França de Sarkosy» ainda não soube responder… E estrategicamente lá vai progredindo! A minha opinião? Acho, no mínimo, paradoxal… Paradoxo que aumenta com as posições que tomam certos religiosos. Sim porque parece-me claro que se trata também de um conflito latente «Deus versus Alá» (por mais irónico que pareça) e onde as atitudes podem parecer antitéticas (se considerarmos que a ICAR condena o adultério mas condena também a tática punitiva do apedrejamento).
Tal como na questão do véu está o caso da mulher condenada ao apedrejamento. A saber: discordo absolutamente, quer da pena de morte, quer do machismo expresso na lei, quer da constituição do adultério como crime mas há que reconhecer que é uma nova versão do paradoxo «libertário mas islamafóbico». E temo que, quanto mais o blacklash ocidental (centrado na questão dos direitos civis das mulheres – estrategicamente ou não) maior será a rudeza de certos sectores árabes fundamentalistas (podendo culminar na execução de Sakineh Ashtiani, um mero joguete).
De qualquer forma, não deixa de ser interessante que as mulheres (e a luta dos seus direitos civis) sejam uma peça-chave. O debate sobre equality gender está em cima da mesa, mesmo que por vezes que se ache anacrónico, mesmo que por vezes seja só uma estratégia política (neste caso, xenófoba). Poderia-se dar um exemplo de que nem dois séculos passaram para que as mulheres conquistassem o direito ao voto em Portugal mas o voto tornou-se uma anedota num pais desmotivado pela crise (prova viva são o aumento das abstenções), não se considera uma conquista importante. Nem a educação nem o trabalho assalariado. A luta das mulheres dá-se agora (“nas sociedades ocidentais”) na frente do simbolismo e na emancipação e consequente conquista de direitos civis das mulheres orientais (como sempre realçaram as feministas pós-estruturalistas). É uma pena que causa tão nobre seja usada como arma de arremesso e com oportunismo político (paradoxalmente francês) na guerra islamofóbica…
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