terça-feira, 5 de outubro de 2010

O grande desafio da República


Eu e Deus - Monólogos

O tema da religião sempre me causou uma certa alergia. O conceito, na sua forma e na sua forma operacional, é algo que me repulsa por si só. E este sentimento não foi só adquirido, ele é também inerente a mim. Sempre tive experiências de vida que me levaram a concluir que, definitivamente, era tudo menos uma pessoa religiosa.

Quando tinha oito anos a minha mãe, tal como as mães de milhares de crianças inocentes, colocou-me na catequese. Estamos a falar da Igreja Católica. Entendi aquilo como um procedimento natural, normal, não o via, como vejo hoje, de uma tentativa ideológica de normalização, domesticação do corpo, da alma e do pensamento (brainwash). Esse meu lado néscio, contudo, não me livrava de encarar aquilo como uma tortura: estar sentado durante horas, a ouvir um homem possivelmente fundamentalista a recitar textos que foram escritos por x mas que, estupidamente, insistia que tinham sido escritos por Jesus. Eu e milhares de crianças por este mundo fora…

Nunca liguei muito àqueles processos solenes e acabei por desistir. A minha mãe tinha-se divorciado do meu pai e o afastamento daquela localidade (Ermesinde) tinha vocacionado a catequese, para meu regozijo, ao esquecimento. No entanto, as histórias sobre o início da vida (em termos mais latos a origem do Universo), a morte (o Apocalipse) e o desconhecido exerciam (como sempre exerceram) sobre mim um efeito curioso. Ora, são essas as grandes temáticas que, por exemplo, a Igreja Católica sempre soube utilizar como estratégia inviolável de legitimação. Basta vermos os avanços do cristianismo aquando das invasões bárbaras na Europa Ocidental sobre o signo da morte, muito na perspectiva daquele provérbio húngaro muito conhecido: “em toca de lobos, não há ateus”. Acontecimentos comparáveis ao crescimento dos movimentos nacionalistas após crises económicas. E assim somam e seguem (algumas) religiões…

Prosseguindo: era um miúdo apaixonado por Astrologia (recebia sempre um livrinho de horóscopo no Natal o que indicava simultaneamente um gosto acrescido pelas personalidades arquétipas inerentes a cada signo e, portanto, à Psicologia) e por livros religiosos (encomendei alguns livros sobre a vida de Jesus à extinta Reader Digest).

Houve uma altura na vida em que recebia Testemunhas de Jeová na minha casa e até gostava de as ouvir. Por detrás de todas as falácias e manipulações inconscientes, pareciam-me pessoas inócuas. Acho (agora olhando para trás) que gostava de algumas visões das Testemunhas precisamente porque eram anti-Igreja Católica (nomeadamente mais desapegadas e humildes) e porque eram (ao contrário de algumas leituras oficiais) mais tolerantes com a homossexualidade (as TJ’s admitiam que a homossexualidade podia ser genética!) embora, em outros aspectos, fossem terrivelmente e conservadoramente radicais (como no vestuário e na questão de doação de sangue, por exemplo).

A partir dessa altura tornei-me sem religião.

Aos 20, com a maior consciencialização sobre o activismo LGBT, pensei que era ateu mas não, acho que sou agnóstico. É uma ideia radical afirmar convictamente que Deus (ou outra/s identidade/s divina/s ou divinizada/s) não existe/m. Por outro lado, admitir que essa/s identidade/s possa/m existir embora não seja certo a sua existência (e daí a inevitável conclusão que podem também não existir), até por questões empíricas (distancio-me assim de argumentos pro-teístas sobre a existência ante-visibilidade concreta) é uma pressuposição mais real. Mesmo que me atirem à cara as teorias de Pascal porque estamos a falar de identidade/s e não códigos de conduta que se relacionam com conceitos tão longínquos e socialmente/humanamente construídos como Inferno ou Paraíso… Essas identidades (reconhecidamente sócio-construídas) podem estar separadas desses códigos de conduta. Daí a admissão que eles podem estar fora do que se chama religião. E chegamos a outro ponto.

Diferenças entre identidade/s divina/s e Religião

Nunca tinha pensado muito nestas questões até que o facebook me pedia (não obrigatoriamente) uma religião. Foi difícil e percebi que misturava Deus e religiões. Que mesmo em relação a Deus é controverso já que, sendo Deus uma construção social, a ideia que se tem dele é equivoca. Porque Deus e não Deusa? Porque Deus, singular, e não Deuses, plurais? Será o conceito de Deus reportado a certas ideologias políticas sobre uma aura de aparente neutralidade?

Ter uma religião não implica acreditar (ou ter em consideração a possibilidade de existir) num Deus (ou numa Deusa ou Deuses, etc) e o contrário também é verdadeiro daí que quando o facebook me peça uma religião não implica a crença (ou não-crença) numa identidade mas uma outra coisa: um sistema organizado que pode (ou não, embora esta hipótese seja muita relativizada) advir dessa crença e que implica códigos de conduta, regulações comportamentais, etc, à semelhança dos mecanismos jurídico-legais. Partindo desse princípio, a minha religião no facebook é: “reticente em relação a qualquer sistema de crença organizado” embora me considere agnóstico. Essa opção (ser-se agnóstico) está contemplada lá mas eu defendo a radical diferenciação entre religião e crença (ou possibilidade de) numa identidade (ou identidades) exteriores ao real (deuses, aliens, o monstro das neves, etc).

A República - O ideal laico

Porque raio me lembrei de escrever sobre esta temática? Porque hoje é o dia nacional da implantação da Republica, essa coisa política que nunca esteve tão ameaçada como nestes tempos críticos!

O sentido simbólico da República advêm exactamente dos princípios modernos oriundos dos ideais franceses iluministas: liberdade, igualdade e fraternidade. Ela procura cortar com a religião (sendo, no seu âmago, pro-laicidade) e consequentemente todas as suas formas simbólicas como o feudalismo (sendo, por isso, esquerda/socialista). A República (neste caso, portuguesa) está em estrita ligação com Modernidade mesmo em termos temporais (finais do séc. XIX).

A Modernidade foi (ou é?) benéfica porque permitiu a ruptura Igreja/Estado nas mais diferentes formas: empirismo, lógica hipotética-dedutiva, neutralidade e objectividade, dúvida metódica, etc; o problema é que a Ciência acabou por se apropriar da linguagem moral da própria religião para perpetuar os mesmos dogmas que esta vaticinara e pior, tentou se apoderar do saber de forma a ser encarada como uma autoridade indiscutível, exclusivamente singular, ocidentalizada, branca e masculinista.

A Ciência como autoridade epistemológica passa a ser o instrumento de legitimidade do real e de controlo estatal. A sua elevação coincide com a formação dos Estados-nação e com os discursos higienistas da eugenia e (evidentemente) do pro-fascismo/nazismo, ideologias muito próximas em termos conceptuais com determinadas religiões como a judaico-cristã (hierarquia, regras morais, punição, etc). Em certa medida o Holocausto era a versão moderna da Inquisição “medieval”.

O grande desafio para as Repúblicas é a laicidade total das sociedades e dos estados o que não implica o desrespeito pelas diferentes religiões, crenças, areligiões (conceito meu), não-crenças, agnosticismo, etc, muito pelo contrário; precisamente por se querer invocar esse respeito é que se remete as expressões religiosas para o campus do privado, fora dos regimes de poder exteriores, fora dos conflitos conceptuais (embora se reconheça que a dimensão privada é também já um foco de poder (ou não-poder) e que, parecendo ser uma questão desactualizada, ela nunca este tão em cima da mesa agora (a questão do véu islâmico na França, os crucificos na Madeira, os lobbies evangélicos brasileiros, o eterno conflito ocidente/oriente, as caricaturas de Maomé, etc). Ser pró-laico faz sentido e só se pode ser pró-laico sendo um/a verdadeiro/a republicano/a.

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