quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Educar, educar, negócios à parte


Algumas escolas privadas protestaram esta terça-feira passada, em frente ao Ministério da Educação – com caixões -, por causa do corte de financiamentos públicos/estatais.

Ora, em primeiro lugar e antes de mais nada, convêm que se diga que se trata de uma questão democrática. Convêm esclarecer o sentido do "democrático": alguns discursos neoliberais poderão aferir o carácter desigual com que o Estado trata as suas instituições (o serviço público) e as instituições particulares alegando a violação de um determinado princípio da igualdade democrática. Não acho que a questão se coloque em termos de igualdade democrática (mais centrada, historicamente, nos direitos civis e não em garantias simbólicas – como lhe chamaria Giddens – como as dinâmicas monetárias, e institucionais), até porque, mesmo se quisermos abordar a questão nesses moldes, a crise toca a todos/as e portanto ninguém pode ficar de fora das medidas de austeridade (i.e., cortes de financiamentos), nem mesmo as escolas particulares.

Contudo, a questão coloca-se de uma outra forma: é viável o Estado financiar o Ensino privado? Na minha perspectiva não. Parece-me até paradoxal que o Estado ofereça aos cidadãos e cidadãs uma oferta pública gratuita (“ah e tal mas nunca é gratuita a 100%”. Ok, aceito, mas a sua frequência é gratuita pois ela nunca está comprometida contrariamente ao Ensino Privado cuja frequência é paga e bem paga) e patrocine um outro tipo de oferta que, por acaso, entra em competição com aquele que deveria ser primário. Pior: Isabel Alçada revela que as instituições escolares particulares têm recebido muito mais do que as públicas. De facto, está pois certíssima quando refere ao Público que «(…) alguns colégios receberam no passado um financiamento “mais do que seria justo”, o que permitiu que alguns “obtivessem elevadas margens de lucro”. “No ensino público ninguém recebe lucros. A única finalidade da escola pública é educar. Não havendo vantagens comerciais para ninguém” (…)». Ora, e o lucro para a educação são como as intenções para o Inferno e há que saber distinguir bens essenciais como educar e negócios cujo objectivo central é o lucro.
Num poste de Dezembro do blogue Arrastão, Daniel Oliveira é conciso:

«(…) A coisa é simples: por princípio, o Estado não deve financiar um colégio se tem ao lado uma oferta gratuita que ele próprio garante. O financiamento público apenas deve existir quando o Estado não está em condições de, num determinado lugar ou para uma determinada população escolar, garantir o direito de todos os cidadãos à educação. O espírito deve ser o de dar ao sistema privado um carácter supletivo: para quem o quer e por isso o paga e para quem não tem alternativas e por isso é financiado. Ao manter o financiamento automático, independentemente da oferta pública, esse carácter supletivo era distorcido. Desviavam-se fundos da escola pública para aquilo que é, muito legitimamente, um negócio. Mas os negócios devem depender do mercado e não do Orçamento de Estado (…)»

Ora, o Movimento SOS Educação vem revelar (num claro ataque ao ensino público) que «que segundo dados fornecidos pelo Governo à OCDE cada aluno das escolas com contrato de associação custa ao Estado 4200 euros/ano, enquanto na escola estatal os alunos custam 5200 euros anuais», contudo não esclarece que o background dos/as alunos/as da pública exigem mais precisamente, quer pela falta de cultura escolar, quer pelas insuficiências económicas que vitimizam esses/as alunos/as. Aliás, não é o que consta relativamente aos custos do ensino privado de ua forma institucional global:

«(…) a despesa do Estado com o funcionamento de cada turma com contrato de associação é três vezes superior àquela que é suportada com os estabelecimentos da rede pública. Sem contar com todos os encargos relativos aos vencimentos dos professores e das direcções das escolas, o Estado paga aos colégios - segundo contas enviadas pela tutela ao Diário Económico - 36.476 euros para despesas com o seu funcionamento, enquanto nas escolas públicas esse valor é de 11.806 euros. A nova legislação - alvo da ofensiva das escolas particulares - impõe um corte de 30% neste financiamento, o que significa que os estabelecimentos com este tipo de contrato passam a receber um total de 80 mil euros anuais por turma, em vez dos 114 mil que recebiam em média».

Algumas vozes afirmaram que não se tratava de escolas privadas no sentido tradicional do termo mas escolas que, sendo privadas, eram financiadas pelo Estado pois a rede pública, pelas dificuldades geográficas, não poderiam abranger essas escolas. Ora, não é preciso mencionar o truque estratégico dessas escolas na angariação de alunos/as fora do eixo geográfico quando tem escolas públicas no perímetro em seu redor. Alegarão a possibilidade de escolha dos/as pais/mães e encarregados/as de educação. Pois, então não se queixem da liberdade de escolha do Estado.

Por outro lado, não posso deixar de salientar a ironia da questão: as escolas privadas que se gabam de serem as melhores pelas alturas dos rankings (com ajudas dos financiamentos públicos?) são as primeiras a “arrebitar cachimbo” quando não vem o Estado a patrocinar os seus privilégios como coisas tão úteis pedagogicamente como «piscinas, campos de golfe, pratica de equitação». Refere Nuno Serra em relação à petulância dos privados:

«A comparação de resultados dos exames nacionais tem contribuído para alimentar uma percepção difusa, na sociedade portuguesa, sobre a existência de uma suposta supremacia do ensino privado face ao sistema público de educação. Dois equívocos associam-se a esta percepção: a ideia de que a escola privada é, tout court, melhor que a escola pública e, sobretudo, que a suposta supremacia do ensino privado resulta de características que lhe são intrínsecas. Isto é, de uma espécie de “código genético” que diferenciaria o ensino privado do ensino público».

Nesse excelente texto, Nuno Serra (inspirado pelo artigo “Desempenho educativo e igualdade de oportunidades em Portugal e na Europa: o papel da escola e a influência da família”, de Manuel Coutinho Pereira) demonstra que as escolas privadas tendem a ser consideradas melhores (importa esclarecer o que se entende por “melhor” e quais os critérios de avaliação operacionais para se tirar tal ilação) precisamente porque recebem “melhores alunos/as”.

Perante este cenário evidente, num minúsculo texto reactivo no «Diário Económico» (sem autor/a), é-se exímio nas tentativas de “apocalipsação” de cenários (à boa maneira direitista), nomeadamente aquele que diz respeito à possibilidade dos/as alunos/as do privado enveredarem pelo público e na insustentabilidade do público, alegando (ainda por cima) a eficiência do privado em dar guarida ao público em algumas circunstâncias (esquecendo por isso que Portugal vivia num regime ditatorial/salazarista onde mais metade das suas gentes eram analfabetas e o ensino tremendamente elitista). Quanto à questão da insustentabilidade é um mito até porque entre a despesa pública no processo de massificação (facilmente adaptáveis e reajustáveis) e nos financiamentos indevidos às escolas privadas venha o Diabo e escolha.

Estas tentativas (e protestos) são formas de impor ao sistema de ensino público a lógica do cheque-ensino (que Nuno Serra descreve tão bem) e do aluno-cliente. É a educação e o negócio de mãos dadas. Cavaco Silva estará lá até 2016, esperando que o PSD suba ao poder e se cumpra o sonho neoliberal de privatizar a Escola Pública, ficando assim evidente esta relação perversa e promíscua entre educação e negócios que fere de morte a nossa cidadania e democracia. Isto é, quem vai realmente nos caixões…

Sem comentários: