sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Fantasmas no Mundo L


Noticias recentes dão conta que a homofobia no Uganda tende a aumentar: desde da propaganda religioso/ideológica anti-gay de uma Igreja norte-americana no país até à publicação de 100 nomes de homossexuais para serem enforcados num jornal (culminando ontem com o assassinato brutal de David Kato, activista gay), com uma novidade: o facto de os media focarem a sua atenção na lesbofobia, quer com o caso de Brenda, deportada do país, quer com o caso de Mllicient Gaika, vítima de estupros continuados como forma de "reconversão para a heterossexualidade", aqui não no Uganda mas no mesmo continente.

Estas notícias dão-nos conta que não são só os gays que enfrentam o preconceito e as suas variadas formas, as lésbicas também. Apesar de prevalecer no ar e historicamente a ideia de que a homossexualidade feminina é menos estigmatizada do que a homossexualidade masculina (com as suas razoes legítimas, é certo), a verdade é que a homossexualidade feminina pode muito bem ser tão ou mais estigmatizada do que a homossexualidade masculina, dependendo do conceito operacional de “estigma” que utilizamos. Se “estigma” (e distancio-me das noções concretas de Goffman, autor que fala muito sobre esta coisa do “estigma”) é “insulto e agressão” devemos, em princípio, todos/as concordar que os gays sofrem muito mais, mas a invisibilidade (“não se falar”, “não se dar nome”, etc) também é uma forma de estigma e, por vezes, mais cruel e insidiosa.

De facto, a invisibilidade lésbica é tão forte que a menção à mera palavra “homossexualidade” (e homossexuais) faz-nos surgir mentalmente imagens (estereotipadas ou não) de homens gays e nunca de lésbicas. Mais: o termo gay representa linguisticamente a franja enorme LGBT de tal forma que uma lésbica pode afirmar que é gay (o que significa que, de facto, ela é lésbica) e fazer-se entender (apesar de poder ser interpretada como uma mulher hetero a reafirmar a sua heterossexualidade no “gosto por homens”, equivalente ao desejo gay).

Tal como os/as feministas reivindicam (e bem) a dissolução do universal masculino na linguagem, as lésbicas deveriam insurgir-se também contra esta universalidade gay que, apesar da estratégia numérica e simbólica e da magnetização homofóbica anti-gay que mobiliza, invisibiliza-as através da linguagem.

Contudo, atenção: a invisibilidade vai muito para além da não referencialização linguística: pode ir para a dissimulação (“são só amigas”, o que nas sociabilidades femininas, mais fisicamente próximas que as masculinas, torna-se crítico), na efeminização (por exemplo, no argumento que faz das lésbicas melhores mães que homens gays porque “todas as mulheres estão destinadas a serem mães”), na assexualização (na referência à sexualidade lésbica com uma forte noção de companheirismo e nunca de sexualidade carnal) ou até mesmo exilação sexual que esconde um brutal machismo por trás (o argumento de o sexo lésbico é desacreditado porque, ao contrário do hetero e do gay, não existe penetração – “mas elas metem dedos? Isso é f***?” -, e que levou a Rainha D. Amélia a exclamar: “mas isso existe?”).

A razão para essa invisibilidade é óbvia. Ela tem que ver como a sociedade organiza o desejo e a sexualidade em modelos tidos como moralmente aceitáveis, princípios universais á la Kant (imperativo categórico que Nietzsche repudiava) e modelos de sexualidade convenientes, utilitários e artificialmente naturalizados tendo em conta um hipotético bem-comum e uma colectividade externa.

Esses regramentos assentam em quatro pressupostos inequívocos: a) a interiorização, inculcação e imposição dos papéis de género polarizados; b) a subordinação da mulher ao homem que hierarquiza esses papeis de género bem definidos; b) a imposição da heterossexualidade ou também chamada heterossexualidade obrigatória e d) a imposição da monogamia como modelo de estruturação educativa/familiar.

Destes pressupostos uma ilação anti-normativa podemos tirar: a sexualidade (toda e qualquer) não é natural, no sentido em que, mesmo sendo um corpo um dispositivo regido pela genética, ele não faz sentido no imbróglio em que a cultura, os padrões de moralidade, as subjectividades, etc, lhe colocam. Mesmo as dinâmicas genéticas são fortemente condicionadas por esses estruturas sociais que podem ser elaboradas/aplicadas pelo mecanismo jurídico-legal, pelas opções e estilísticas de modos de vida, etc.

A interiorização dos papéis de género (re) define-se exactamente pela sua vinculação a uma ideia essencializada (logo falseada) do corpo de homens e mulheres (homem = forte; mulher = fraca) e também à genitália e execução e dinâmica do acto sexual, que tem como pressuposto a reprodução. Isto é, porque um homem tem um pénis e sem ele estar erecto não existe fecundação, o seu desejo será primário (ou primariorizado) pois é crucial, contudo, o desejo da vagina será secundário pois para haver fecundação a mulher não precisa de se sentir estimulada limitando-se a “abrir as pernas”, assim o seu desejo é secundário (ou secundarizado). Não espanta pois que em questões como a mutilação do clítoris a sexualidade feminina seja desvalorizada assim como a sexualidade lésbica e haja uma repressão forte à sexualidade gay (se um homem gay não sente desejo por uma mulher, finito, no reprodution; se uma mulher é lésbica pode sempre ser violada…).

Ora, o desejo sócio-sexual ocidental é construído nestes regramentos arquetípicos e essencialistas e nestes 4 pressupostos tendo como princípio organizador o desejo do homem heterossexual (patriarcado e homofobia de mãos dadas).

A monogamia forçada obriga à competitividade (alguns/mas diriam que seria genética…) de clã uniracial (e assim à propagação de uma só raça) e à repressão (mas consequente forte erotização) do incesto e do adultério, tal como refere Gayle Rubin. Não admira, findo este ponto, que a sexualidade lésbica cumpra o seu compromisso de “harenização” (vem de “harém”) e de sexualidade-fetiche (ou de “adorno”) para homens heteros (que não tem equivalente na variante “gay/mulher hetero”) mas que o espectro butch seja altamente dessexualizante para homens heteros e, por vezes, ao revelar a reivindicação da autonomia e independência face ao homem (hetero), se torne ameaçador (como nas sociedades greco-romanas que permitindo a homossexualidade masculina, estigmatizaram fortemente a feminina), razão pela qual muitas feministas são tomadas como lésbicas frustradas e na crença de que a lésbica é alguém que sofreu algum trauma (violação: a homossexualidade como desvio causado por algo negativo) e ganhou nojo a homens ou então nunca sentiu o pulso sexual de um homem, daí as “violações de reconversão” que recriam da pior forma imagéticas do Holocausto nazi já que aí muitas lésbicas também eram abusadas sexualmente por soldados nazis (aliás, a elas eram-lhe dados um triangulo negro e não eram propriamente homossexualidades mas sim… anti-sociais - a homossexualidade feminina como nunca firme e determinada -).

Essa “fluidez” da sexualidade de adorno é uma miragem produzida pelos olhos de homens heteros mas que vincula lésbicas a casamentos de farsa.

Fica evidente então que as lésbicas sejam uma identidade sexual desacreditada dentro da comunidade LGBT, mesmo em cargos administrativos pois durante muito tempo as organizações de defesa dos LGBT eram lideradas por homens (gays); assim não admira que muitas feministas tenham decidido (após muita hesitação homofóbica) integrar lésbicas (assumidas) nas suas “fileiras” com o advento da lavender menace. Essa desigualdade institucional atinge as lésbicas dentro dos espaços LGBT (bares LGBT só – quando existe obviamente - com strips masculinos), na representação dos artefactos culturais LGBT como revistas (onde só aparecem homens desnudados), na afronta ao estereótipo butch (que muitos gays rejeitam) e na concentração da questão LGBT exclusivamente para os gays.

São eles que, por desigualdades de género estruturais, são compulsivamente vítimas das piores afrontas (insulto, agressão, morte) mas são elas que, ao não sofrerem as afrontas com a mesma intensidade de que os homólogos gays (e essencialmente falando concerteza), pensam que não existem.

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