sábado, 15 de janeiro de 2011

O Renatinho vermelho e a bichona má


Conta a história que o Capuchinho vermelho era uma menina muito inocente que, na difícil tarefa de levar um cestinho de comida (presume-se que seria comida) à sua avó adoentada, teve que passar pelo tormento de ser desejada por um lobo mau de quem toda a gente ouviu falar e ninguém conhece, que tinha como único intuito come-la de todas as formas que o verbo «comer» comporta.

Tirando todas as simbologias eróticas - da perda da virgindade, do assédio sexual infantil à prostituição ocultada -, o caso “Carlos Castro & Renato Seabra” faz-me lembrar essa história, quer pela dicotomização das personagens (o Capuchinho representa o bem imaculado; o lobo mau o vilão impreterível), quer pela inquestionabilidade dessa dicotomização (nunca nos passou pela cabeça que o Capuchinho fosse quem aliciasse o lobo ou a avó uma derradeira megera disfarçada, tal e qual agente da CIA, para lhe roubar a cesta e sair de cena com um sorriso nos lábios. Afinal de contas, quem lhe mandou passear pelo mato em trajes menores e intitular-se de “Madre Teresa de Calcutá”?).

Ora, muito já foi dito sobre o caso “Carlos Castro & Renato Seabra”, abafando (que termo oportuno!) as próprias campanhas presidenciais; opiniões muito bem fundamentadas e teorias da conspiração que dariam para renovar o CSI: Miami para o dobro das temporadas e não precisamos de conhecer pessoalmente os protagonistas (até porque conhecer pessoalmente todos/as os/as deputados/as do Parlamento deve dar trabalho): é teorias freudianas (sim, o Carlos Castro tem todo o aspecto de figura paterna), é histórias canibalescas de sadomasoquismo, é dissertações morais sobre drogas, etc etc etc. Contudo, um argumento é preferido e expresso para lá da exaustão pela maior parte das pessoas (essencialmente e estrategicamente a “arraia-miúda”) e nele se pode ver, como reacção, as tentativas inusitadas da própria mãe do “alegado” suspeito, Renato Seabra, de comprovar que o seu filho é heterossexual como se fosse o real crime, aqui em causa, a homossexualidade do seu rico filho (como diria a Cinha Jardim) e não o acto macabro de se matar alguém (nada de novo, é certo) com os recambiantes e rituais precedentes, como tirar um olho e mutilar o pénis (incomum, diga-se de passagem).

Bem vamos lá analisar as implicações e subliminariedades deste caso: Carlos Castro é o perfeito estereótipo recorrente de um gay velho, fascinado por rapazes novos – tal como muitos dos seus congéneres heterossexuais -, símbolo máximo da futilidade das classes altas e do jet set português e das bichas como frasquinhos de cianeto em compulsão deslumbradas pelo admirável (e obscuro) mundo da moda, alvo fácil de muitos outros gays – os heteronormativos, ou como se diz no senso comum, os discretos -, pela associação conspurcada ao espectáculos dos/as travestis e da luta contra o HIV-Sida, essa doença de bichas badalhocas que dão o ar aos heteros de coisas que são mas a gente finge não serem. Fica fácil de perceber, perante este cenário, como é que poderes de diferentes ordens se reúnem num quadro, á partida, coerente: lobby, idade, orientação sexual tida como perversa e imoral, ascensão, futilidade e feminilidade. Era (e é), por muito que nos custe o politicamente correcto, que assim é Carlos Castro visto pela esmagadora maior parte da população (não fiz nenhum estudo de opinião mas…).

Como diria numa bela crónica, Paulo Pinto: «Detestava o Carlos Castro, era-me profundamente repulsiva aquela pose emproada e vaidosa, aquele tom convencido e arrogante, aquela postura intriguista, mundana, fútil. Personificava o que sempre execrei nos media: a vantagem do meio de comunicação para promover a imbecilidade; aquelas crónicas da Daniela, aqueles juízos idiotas, as elegantes vs. as pirosas em sentenças verrinosas, gratuitas, vazias, alinhadas nas revistas apenas para promover a má-língua e a intriga, o lado mirone que habita em cada um de nós. Sempre me irritaram as loas que cantavam ao seu trabalho, disfarçando as futilidades sob a capa do "controverso", do "polémico", do "não ter papas na língua". Até ouvi vários designá-lo por "jornalista". Fim de desconto», referindo o carácter ironicamente dantesco e dramático (porque é que a morte de certas bichas assume sempre este carácter?) desta história-novela.

Sabemos que os comentários inquisitoriais e fascizóides do apelo de morte a pessoas que matam outras grassam pelos comentários de tudo o que é jornaleco. Tendo em conta o crime em questão seria provável que se passasse o mesmo mas não, tudo muda quando a vítima é a bichona descrita anteriormente. No consciente colectivo, assiste-se à legitimidade de os gays serem assassinados e dos gay killers serem desculpabilizados. É uma diligência transhistórica, não há reversibilidade: em muitos crimes homofóbicos (isto é, em que os crimes são cometidos em função da orientação homossexual da vítima, ou porque é de facto homossexual – bastando a auto-definição ou as referências à mesma como homossexual – ou porque se pensa que é homossexual), os/as culpados/as são invariavelmente desculpabilizados/as ou tem a sua pena reduzida. Caso para se lembrarem do mundialmente famoso caso de «Matthew Shepard» em 1998 e do Harvey Milk em 1978 com o argumento escandaloso do “twinkie defense”.

No primeiro caso, os assassinos tiveram a pena reduzida porque a) alegaram que Matthew os tinha assediado (como o assédio de alguém tivesse obrigatoriamente de ter como reacção uma agressão ou morte. Se fosse uma mulher seria muito diferente…) e b) alegaram serem bissexuais (como se os LGBT’s não pudessem também serem homofóbicos/as). No segundo caso, Dan White foi desculpabilizado por estar sobre muito stresse… por ter ingerido muita junkie food.

A ideia da homossexualidade como aliciamento (potencializada pela diferença de idades), de contaminação “hetero para homo” e a sua ligação artificialista à pederastia e pedofilia – essa perversões que confluem “no mesmo saco”-, estratégia claramente sensacionalista, incitadora do pânico moral e do ódio social homofóbico (patente no processo “Casa Pia”), é pois invocada em força nos comentários homofóbicos que contaminam as redes sociais e conferem às pessoas um poder imparável como se pudesse dizer tudo que lhes vem a cabeça sem restrições ou controlo (fazendo da liberdade de opinião/expressão infundamentadas uma forma de castrar as liberdades dos/as outros), de tal forma que a ILGA Portugal teve que intervir.

Esta sensação de poder é o resultado do prazer na estimulação ao ódio covarde contra uma minoria e referida por Henrique Raposo:

«As pessoas sentam-se no seu cobarde anonimato, e deitam cá para fora todo o lixo que têm acumulado na cabecinha. A onda anti-gay que anda por aí assusta, porque revela que boa parte da sociedade - além de ter vagas noções gramaticais - tem também uma vaga noção de moral: as pessoas não discutem o assassínio em si mesmo, mas o facto de o rapazinho gostar de mulheres»

Tendo em conta estes pressupostos, fica fácil de perceber porque é que este caso se concentrou na homossexualidade de Carlos Castro como motivação para o crime e na desculpabilização do rapaz e as tentativas de fazerem acreditar que é heterossexual, com entrevistas de alegadas namoradas que afinal eram «amigas especiais», como se a bissexualidade ou os namoros de farsa «gay com hetero» não fossem realidades sobejamente conhecidas, como se o choque de amigos/as e da mãe os/as fizessem negar constantemente a identidade do rapaz (a Amplos explica isso) e como se, muita da prostituição masculina – dirigida a gays, of course, não fosse praticada por homens heterossexuais que a troco de alguns euros, para alimentar a esposa, os seus cinco (ou com sorte) dez filhos e comprar aquele cinto «Dolce & Gabanna», esses paneleiros que os prostitutos (“heteros”) detestam mas paradoxalmente admiram, dão o cú na «Gonçalo Cristóvão». Vale lembrar o famosíssimo assassinato de Versace em 1997.

Alegadas mensagens no facebook, explicitadas por Felícia Cabrita (essa repórter ideologicamente neutral – cof, cof - e que adora de morte os gays), dão conta de que é Carlos Castro quem inicia contacto com Renato quando agradece a aceitação de um pedido de amizade, como se isso provasse qualquer coisa. Mas (o tiro sai sempre pela culatra) prova também que Renato Seabra colabora neste processo de engate: não lhe deixa responder, está em plena consciência quando o faz porque as mensagens são espaçadas temporalmente (premeditação, evidente quando coloca um aviso “do not disturb” naquela noite factícia na maçaneta da porta) e mostra-se fascinado pelo admirável mundo novo da moda e… manda-lhe beijos.

Portanto, já estamos a discutir a sexualidade dos anjos, quer queiramos, quer não. Este caso tornou-se um caso sobre a legitimidade da homossexualidade, como a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não só porque a homossexualidade é um padrão minoritário e portanto mais “apontável” (mau era se em crimes de assassinatos, violência domestica, abusos sexuais de menores, etc, se mencionasse sempre a heterossexualidade dos/as culpados/as) mas porque é convenientemente “apontável”. Parece então que colocarmo-nos no lugar de Castro é sermos pró-gay e no lugar de Renato é sermos anti-gay. Vale citar o grupo denunciado do facebook: “eu apoio Renato Seabra e acho que matar gays não devia ser crime”.

Na minha perspectiva e partilhando a opinião com a Maya, independentemente de ser gay ou hetero (para mim a questão não se coloca nestes moldes), Renato queria ascender. É uma possibilidade sentir-se atraído por homens (muito) mais velhos mas muito remota. Viu naquela oportunidade, não a figura do pai, mas a chave para a fama mundial. Não caio na teoria de que Renato seja homofóbico: era modelo, convivia com carregadas de gays, mais bichas de que meia dúzia de Nelos e Castelos Brancos. Era amigo pessoal de Pedro Crispim. Ser de Catanhede e estar no mundo do Desporto é uma contribuição nefasta para o processo de outing e havemos de considerar: uma coisa é assumir ser gay, outra é dizer que se namora ou se está envolvido com um homem de 65 anos, outra é dizer que esse homem é o Carlos Castro. São coisas ligeiramente diferentes, com hierarquias de inaceitação social crescentes.

Aliciado? Não excluo a possibilidade de Carlos Castro fazer valer o poder dos euros para se afirmar mas não está provado que isso seja explícito. Mau era uma fulana x, independentemente das intenções, comprar um soutien da Intimissi e culpa-la de ser a responsável por mais masturbações por metro quadrado de jovens impúberes.

Pois, não me parece que um cavalão como o Renato seja forçado a algo ou ate mesmo forçado a responder às mensagens do facebook (se forem reais…). Levado para NY porque se tratava de promessas profissionais e afinal era um romance idealizado por Castro (e nós sabemos como é que muitas bichas podem sonhar alto) é uma possibilidade mas que não dá o direito de matar ninguém, principalmente, naqueles moldes; porque estar num quarto de hotel do Intercontinental (numa cama de casal) não deve ser assim tão constrangedor e porque a polícia existe para alguma coisa.

Quando Renato refere que se «livrou do vírus» e grita «já não sou gay» temos de considerar, quer a inveracidade da afirmação (ninguém muda de orientação sexual por nenhum motivo, principalmente matando alguém), quer os factos (se Renato já não é gay quer dizer que ele já foi. Se tratasse de actos homossexuais – provocados como troca para regressar a casa -, Renato não usaria o termo identitário “gay” mas possivelmente outra expressão).

Assim, resta-nos o álibi da perturbação (a twinkie defense): pressupor uma homofobia internalizada (como tem vindo a ser comum em muitos crimes homofóbicos) é uma possibilidade forte, tal como o aliciamento de Castro, mas não invalida de Renato em ser aquilo que a homofobia não quer: gay, e se é gay porque motivo haveríamos de acreditar que foi aliciado, não é verdade? Mentira! Sendo gay, uma pessoa pode ser aliciada, abusada ou violada porque não basta duas pessoas terem duas orientações sexuais iguais (ou semelhantes: bi com gay ou bi com hetero) para haver um consenso sobre a prática sexual. Basta vermos o exemplo das violações heterossexuais. De caminho os gays começam a mutilar heteros e alegam perturbação psicológica...

É claro que a simbologia da mutilação peniana, mais do que a expressão de um crime passional, parece ser a expressão de um crime anti-gay e provar que Renato seja heterossexual também torna mas viável o agravamento da pena por crime de ódio em função da orientação sexual previsto pelo estado de Massachutess, porque crime de heterossexuais homofóbicos são muito mais comuns do que de gays homofóbicos.

Se isto era uma tentativa de atacar os/as homossexuais, ainda é muito cedo para termos a certeza, mas vai sair certamente infrutífera porque, mesmo que o Renato tenha a pena reduzida, terá que cumpri-la (e ser alvo de brutamontes activos e dotados na prisão é para muitos/as um consolo) e a família terá que despender muitos milhares no pagamento a esse advogado que adora ser intitulado de son of a bitch.

As pessoas já não caem em histórias de encantar: agora é o Capuchinho que tem que responder por si. Afinal, o que levava ele na cesta?

2 comentários:

João Roque disse...

Parabéns por este texto, extremamente bem escrito e focando todos os pontos importantes deste macabro crime.

Sérgio Mangas disse...

Natcho, que texto fabuloso! Do melhor que já li sobre o assunto. Para além de bem escrito a argumentação está muito bem construída. Para ler e reler. Estás de facto de parabéns!