quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Até a pirâmide abana



Quando se fala em ditaduras pensamos em regimes políticos extremamente autoritários, com um líder como cabeça da organização, a quem todos/as devem obediência máxima e submissão e onde a palavra «liberdade» só existe num único sítio: na jaula. Esta é a noção tradicional de ditadura, comummente ligada a regimes de (extrema) direita (Hitler, Franco, Mussolini, Salazar).

Quando olhamos para o nosso mundo ocidental pensamos que a maior parte das liberdades estão conquistadas e que o nosso mundo ocidental se pauta, quer pelo respeito (ou na melhor das hipóteses: tolerância), quer pela liberdade de fluxo de informação, o que é um pensamento legítimo e com base sociológica fundamentada.

Um macro processo, a nível mundial, e resultante dos processos político-económicos da mundialização do sec. XV, foi responsável pela aceleração atómica da informação: a globalização que tanto maximizou os processos de implementação capitalismo como forma de organização económica mais viável, quer o ideal de democracia conceptualizada pelas ideias iluministas (liberdade, igualdade, fraternidade), em claro deficit (e mesmo oposição) com o interesse capitalista.

A globalização permitiu um maior fluxo de informação e maior poder libertário de tal forma que, hoje em dia, pensar numa ditadura em moldes tradicionais não se coaduna com a ideia de ditaduras. A direita sabe-o. Como se tornou impossível controlar o social, as ditaduras travestiram-se de outras formas: a) mercados e b) democracia (falseada, claro).
Passo a explicar:

a) os processos económicos capitalistas, desde do sec. XVIII, culminaram com a emergência e domínio do sistema bancário no mundo inteiro sem limites, barreiras ou regulações estatais totais. Exemplos: hoje em dia, se queres ter um emprego, tens que abrir conta no banco para receber o salário; existem empresas multinacionais e bancos que são 10 vezes mais ricos que muitos Estados e o desenvolvimento de uma sociedade é medido por índices meramente económicos. De facto, os bancos tomaram conta da nossa vida económica e o poder económico concentrado numa só instituição ou pessoa se tornou um perigo (Berlusconi é detentor de uma boa parte do sistema televisivo italiano). A crise financeira mundial e as medidas de austeridade estatal como resposta são implicações desses sistemas. Para além desses acontecimentos, anda no ar, desde da década 80/90, a ideia de que não há alternativas ao capitalismo caindo-se assim num determinismo fatal que rejeita outras possibilidades e se consolida num pensamento único e homogéneo.

b) as democracias falseadas são pretensos estados democráticos sem que de facto se trate de uma democracia, quer pela retórica do discurso e distanciamento dito/prática (é bonito falar-se de igualdade e não reconhecer o voto das mulheres), quer pela deturpação conceptual dos mecanismos democráticos (utilizar-se o referendo contra o casamento entre PMS, justificando-se pelo rigor democrático que representa mas esquecendo conceitos como democracia representativa), quer pelo desequilíbrio conceptual da própria democracia (não se pode liberar uma empresa que vai contratar x trabalhadores/as durante 1 ano e despedi-los de seguida – liberalismo – quando isso prejudica outros pilares democráticos com o desemprego, precariedade, etc – fraternidade (ou falta dela).

Isto tudo para dizer o quê?

Os acontecimentos no Egito representam, quer o poder das populações, quer a inoperância das ditaduras (Tunísia, Iémen, Jordânia) como formas de controlo. O satélite que transmitira para a Al-jaazera foi interrompido e logo se ergueu outro. A população, saturada de uma ditadura de 30 anos, diz «basta!» e aqui não se trata de fundamentalismo islâmico. Refere Rui Tavares:

«É desencorajador ver as chancelarias ocidentais procurando conhecer melhor a biografia de Omar Suleiman, o novo vice-presidente. A resposta já foi dada pelos egípcios: Omar Suleiman é o passado, e vocês conhecem-no bem. Omar Suleiman foi o homem que com a administração Bush tratou de sequestros, prisões secretas e tortura. É o rosto da cumplicidade com as apodrecidas ditaduras do médio oriente em troca de petróleo, estabilidade e repressão. Omar Suleiman é um daqueles peritos em manipular o medo ocidental com o fundamentalismo islâmico enquanto embolsa biliões de dólares em “ajuda” militar. Que há para conhecer que não saibamos já?»
Washington hesita, em vez de desligar a ficha a Mubarak de uma vez por todas. Tel Aviv preocupa-se, porque lhe dava jeito ter aquela ditadura ali ao lado. E Bruxelas — quem se rala?»

Assim, como Slavoj Žižek:

«A hipocrisia dos liberais ocidentais é de tirar o fôlego: eles publicamente defendem a democracia e agora, quando o povo se rebela contra os tiranos em nome de liberdade e justiça seculares, não em nome da religião, eles estão todos profundamente preocupados. Por que aflição, por que não alegria pelo facto de que se está a dar uma chance à liberdade? Hoje, mais do que nunca, o antigo lema de Mao Ze Dong é pertinente: "Existe um grande caos abaixo do céu - a situação é excelente».

Esta revolução demonstra outra coisa: o claro deficit entre interesses capitalistas e aspirações sociais democráticas, marcando pontos o primeiro. É preferível uma ditadura que represente os interesses económicos das grandes nações (EUA – de qualquer forma - ou particularmente Israel) que haja uma coisa tão maléfica como eleições livres para as populações. Mas afinal de contas, a globalização não auxilia só o capitalismo mas também a consciência comunitária das pessoas e os novos movimentos sociais, daí que a Internet (facebook, twitter, etc) tenha logo sido cortada. Ela possibilitou discursos e acções verdadeiramente democráticas e esse é medo das ditaduras não ocidentais: perante elas, até as pirâmides abanam.

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