quarta-feira, 2 de março de 2011

O direito à identidade humana


Não consigo imaginar o que é ser-se transexual. Ou melhor: ser gay não deve ser muito diferente de ser-se transexual: ambas as identidades encaixam-se naquilo que podemos essencialmente chamar de “minorias sexuais” e ambas as identidades desafiam as concepções normativas do género dualizado e da sexualidade e por isso são vítimas do mesmo tipo de preconceito, estigma, escárnio, etc, por vezes indiferenciado (e.g., o “paneleiro” serve de insulto para o homem gay ou para o/a trans m/f) mas cada identidade tem as suas especificidades.

Ser-se gay (ou lésbica, ou bissexual) implica uma identidade sexual que se funda centralmente na orientação afetivo-sexual com possíveis e muito prováveis expressões no comportamento afetivo-sexual. Isto é, ser-se gay (ou lésbica, ou bissexual) implica uma dinâmica interacional. Ora, ser transexual não implica essa dinâmica interacional (o que não é o mesmo de dizer que os/as transexuais não tem orientação sexual, definida, à partida, pelo seu sexo biológico podendo assim ser, quer hetero, homo ou bissexual).

Ser-se transexual pois é observar-se e entender-se a si mesmo/a, precocemente (outra caraterística semelhante à orientação hetero, homo, bissexual), como pertencente a um sexo/género que não corresponde ao seu sexo biológico e essa identidade enquanto “sexo certificado” pode (ou não) estar ligado à operação de mudança de sexo (e.g., uma mulher pode quer mudar de sexo para homem, no entanto não efetuar a reconstrução do pénis).

Há portanto uma diferença em termos de dinâmica interacional e perceção de identidade de género. Essa diferença é, por exemplo, responsável pela recente separação entre as associações LGB e as associações T.

De salientar que as peculiaridades não se resumem a essa diferenciação: os/as transexuais são uma franja muito mais discriminada da população LGBT, sofrendo inclusive a rejeição dos gays (é histórica a explicação do homem gay se “separando” identitariamente dos/as transexuais e portanto hierarquizando) ou de feministas (o estereótipo comum da feminilidade das “recentes mulheres” trans pode ser incompatível, quer com as noções de “verdadeira mulher”, quer com o ideal feminista anti-feminino/a); os/as trans surgem ligados a universos que não necessariamente os seus (travestismo, prostituição) e, sendo os seus – como no caso da prostituição -, os laços sociais são duplamente fragilizados; são invisibilizados/as, não só porque representam uma minoria estaticamente mais pequena que os gays e as lésbicas mas porque é um assunto ainda mais tabu e podem sofrer com hierarquias ainda mais microscópicas e complexas dentro da comunidade trans.

Nem em todas as sociedades tal é assim tão linear, se bem com lógicas perversas inerentes e subliminares: no Irão, que criminaliza as relações homossexuais com pena de morte, é pedido a muitos/as homossexuais (mais os gays femininos, “os indiscretos”) que mudem de sexo para haver uma conformidade entre género e sexualidade. Na Índia uma casta da população (“hidjas”) é considerada divinizada e até tomam conta de crianças. Na Tailândia, a sociedade aceita mais facilmente os/as transexuais do que os/as homossexuais.

É fácil associarmos a transexualidade, quer a uma disforia (ou no sentido senso-comunizado, a uma “doença”), quer a uma versão radicalizada da homossexualidade (e.g., o homem gay queria ser uma mulher mas não tem coragem para efetuar a operação de mudança de sexo. O transexual tem essa coragem), o que por vezes pode conduzir a visões biologizadas e darwinianas da sexualidade, logo fascizantes.

Quanto ao primeiro ponto, é relativizável pois o conceito de doença é definido estrategicamente pelas ideologias, não só politicas mas também pessoais dos/as médicos/as, psicólogos/as, etc, e em relação com os dispositivos de poder e coletividades e portanto, sendo uma construção social, o que hoje é uma doença amanhã deixa de ser (e.g., masturbação, homossexualidade, “canhotismo”). Afinal de contas, ninguém diz que fazer um lifting é uma doença…

Ora, tal não invalida de essa concepção estar imbuída de argumentos fortes. Por exemplo, um argumento transfóbico comum indica indignação pelo fato de o Estado pagar a operação de mudança de sexo porque a transexualidade é considerada uma “doença”. O argumento trans-friendly seria admitir a despatologização da transexualidade. Ou vice-versa: o argumento transfóbico insulta (sim, “insulto” é a palavra certa) os/as transexuais de “doentes”. O argumento trans-friendly surge em forma de desafio: então que o Estado pague as operações.

De fato, não consigo imaginar o que é ser transexual, não para me demarcar deles/as como “os/as outros/as” mas porque ser-se transexual deve ser muito difícil e “exigir” novos tipos de “sofrimento” que o “ser-se gay” não implica. Contudo, tenho a certeza de três imperativos sociais: a ideologia democrática da igualdade e da liberdade, o livre acesso à felicidade e o princípio da não-discriminação. É por isso que acho ridícula a resistência simbólica de acesso ao novo nome (assim como a atribuição de uma designação que não a de casamento para a “união homossexual”), com argumentações à la Cavaco, uma forma de desvalorização ofensiva das identidades das pessoas e à sua humanidade. Sim, porque homens, mulheres, heteros, gays, lésbicas ou bissexuais, transexuais, hermafroditas ou intersexuais, travestis ou assexuais, temos todos/as uma única identidade inviolável: a identidade humana e principalmente o direito a ser pessoa e cidadão/ã.

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