segunda-feira, 28 de março de 2011

Ankara, pérola euro-asiática


Semi-europeia, semi-asiática, a Turquia fica situada a meio-termo no vértice mais noroeste da Europa Oriental fazendo uma ponte estratégica com o Norte da Ásia. Escoltada pelos países europeus do leste de tradição comunista e a sul por países de índole islamita, a Turquia é um poço diverso de oportunidades multiculturais, contudo, não fica muito longe do ideal civilizacional do Ocidente e, por isso, distancia-se de todos estereótipos "islamofóbicos" que possamos ter. Uma vez lá, parece que nunca tínhamos saído verdadeiramente de Portugal.

A moeda oficial é a lira turca e em alguns pontos aceitam euros pois o euro é uma moeda forte (1 euro é igual a duas vezes uma lira, isto é, 1 lira é igual a 50 cêntimos). De fato, fazer o câmbio num banco turco implica receber mais dinheiro contrariamente ao câmbio num aeroporto onde se tem que pagar taxa de câmbio (4€ e tal).

Na Turquia fala-se o turco e só na Turquia é que este é válido. O inglês é a segunda língua mas os turcos, na sua maioria, tem um péssimo sotaque. Em jeito de curiosidade, «Olá» em turco diz-se «meraba» o que foneticamente soa a uma expressão verbal portuguesa relacionada com sexo anal (“me enraba”) - o que parece ser uma ótima forma de estabelecer uma conversa e conhecer alguém (joke) -.

Depois de longas e exaustivas horas de voo e de uma estadia prolongada no aeroporto de Munique (com direito a net e café grátis), era altura de desbravar o Império Otomano.

Ankara é pintada de rostos diversos, na sua maioria, carregados e pouco expressivos. Não deixa pois de não surpreender que muitas pessoas prefiram a libertina (in a good way) e cosmopolita Istambul.

O quarto da Guest House (espécie de pousada de juventude) fica um pouco distante do centro e o caminho até lá é marcado por regiões (vales e colinas) montanhosas que exibem ostensivamente edifícios megalómanos, - industriais e habitacionais - e shoppings - como a Panora - enquanto a zona pobre da cidade se agita num outro extremo da cidade. A Turquia é pois um país de contrastes.

O pequeno-almoço na Guest House é servido sobre o modus operandi self-service e continha, entre o previsível cacete e queijo, chá e paté de rosas (o chá é terrivelmente amargo), salame, azeitonas, ovo cozido, pepino fatiado e requeijão. Os quartos não tem persianas o que satisfaz as ideias perversamente kinky dos voyeurs e a água em conjunção com a comida provocou mais estragos no meu estômago do que dezenas de revoluções tunisinas, egípcias e líbias, todas juntas.

Qualquer reclamação, a comunicação na Guest House aos funcionários era feita pelo Google Translator que passavam o seu tempo a idolatrar o enorme plasma no âmago da sala que ora passava telenovelas turcas ou notícias populistas num canal equivalente à nossa TVI.

De fato, ao nível da culinária, a Turquia é peculiarmente diversificada, talvez em demasiada. Como alternativa nem os internacionalíssimos kebaps nos salvaram. Os kebaps turcos nada têm que ver com os kebaps “portugueses”: aproximam-se ligeiramente de pizzas e a comida turca, embora não muito distante da portuguesa, pauta-se pelos excessivos condimentos (sal, caril, menta, etc). Sejamos sinceros: qualquer coisa era melhor que comida de avião onde o pequeno almoço podia ser um pão com omeleta ou batatas assadas com espinafres.

O MacDonald’s, símbolo máximo do capitalismo ocidental e porto-de-abrigo a não “nativos” que não se deram bem com a comida turca típica, é um belo (e espera-se, último) recurso. Ao contrario dos portugueses, o da baixa da cidade é limpo e parece ser o lugar ideal para namorar revelando-se assim um lugar não acessível a todos/as (ou então o nacionalismo turco o invisibiliza), deixando antever o fosso socioeconómico turco.

No centro de Ankara, numa zona tão luminosa quanto Tokyio espalhados por uma infinita rua semelhante à Rua Santa Catarina no Porto, os turcos fazem-se à vida com o mercado negro (marcas roubadas, falsificações, etc).

Ao nível político, a "democracia" turca ganha contornos de anedota se tivermos em conta que certos sites como o bloguer (não se trata de um site qualquer mas sim do ex-líbris da liberdade de opinião) são interditos, as críticas ao Governo que são punidas pela lei, que tirar fotografias a edifícios estatais pode resultar em infracções e o exagerado culto ao líder-fundador da Turquia (Ataturk) e a reação ultra-nacionalista dos/as turcos/as ao hino nacional (os/as turcos/as simplesmente param quando o hino nacional turco toca independentemente do que estiverem a fazer. Assisti por experiência própria e curiosamente... aderi. A psicologia de massas explica...). Não é por acaso que a bandeira turca marca presença em cada colina do território.

Talvez por isso a Turquia tenha um historial que a impeça de entrar na EU (ou será antes o número da sua população que influencia drasticamente as decisões da EU no Conselho Europeu e que ameaça sobretudo simbolicamente a “Europa Cristã”?). No entanto, os turcos não estão muito preocupados. Entrar na EU significa perder a moeda e sobretudo a identidade, identidade essa bem demarcada nos rituais de masculinidade e no culto da militarização. As escolas contem painéis com a história da Turquia com imagens fortemente “soldadeirizadas” e, contrariamente àquilo que se observa nas salas escolares europeias, na sala só existe um mapa da Turquia e não um mapa-múndi.

Ao nível da religião, esta é essencialmente islâmica, com mesquitas por todo o lado (Sarkosy, Cameron, tremam!), mas curiosa e surpreendentemente muitas poucas pessoas com quem contactei não acreditavam em “Deus” ou papagueavam aquela ideia agnóstica do “algo mais”.

Poucas são as mulheres que se vêm com o véu. Só as mais velhas parecem faze-lo. Incrivelmente, a onda progressista (e laica) vem das escolas privadas e não das públicas verificando-se a mesma assimetria entre as duas. Estratégias do neoliberalismo? Talvez, mas a verdade é que é um mito pensar que as turcas são grosso modo umas reprimidas.

Os estereótipos dos turcos enquanto péssimos condutores são os únicos que se confirmam. As ruas estão pautadas de táxis (lê-se «taksis") loucos como os paquistaneses em NY (se bem que estes últimos, à partida, não passam os sinais vermelhos ao contrário dos turcos) e de DOMUS, pequenos autocarros, que fazem a ligação centro-periferia-centro pelo mero custo de duas liras (1€) e não hesitam em atropelar pessoas fora das passadeiras.

De forma genérica e apesar de algumas caras distorcidas (que tanto existem lá, em Portugal, na lituânia, no Japão, etc) os turcos são acolhedores e prestáveis, pautando-se por vezes de uma necessidade afetiva surreal (às vezes em exagero se tivermos em conta os avanços despropositados de dois marmanjos turcos, que nunca ouviram falar de desodorizantes, às raparigas estrangeiras ocidentalmente loiras; mulheres ocidentais = malucas, fáceis, disponíveis e sluts -).

Outro episódio curioso foi o fato de a Eurovisão ser uma espécie de melting point referencial. Quando queríamos destacar o país recorríamos à Eurovisão e tal era válido para todos os países, até para Portugal com um historial negro neste famigerado festival.

«Every way that i can» e »Kiss, Kiss» eram hits turcos arrasadores. Cantarola-los (ou tentar faze-lo) era conquistar os estranhos corações otomanos.

No supermercado ou nos táxis ouve-se a «S&M» da Rihanna, isto é, uma canção sadomasoquista a tocar num minimercado local onde mulheres de véu fazem compras, possivelmente, para os seus maridos.

É real. A globalização marca presença a cada instante numa cultura fragmentada. Ankara é pois um misto, por vezes irónico, entre o tradicional e o moderno, convivendo entre si o que não deixa de ser interessante e sintomático de algo: a Turquia enquanto força motriz euro-asiática em potencialidade ou, poeticamente falando, uma diamante em bruto para ser polido.

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