terça-feira, 24 de maio de 2011

Perdidos na Europa



Sei que toda e qualquer crítica a um “reality” show vai, muito certamente, despoletar imagens das visões do crítico como um conservador (ou conservadora) hipócrita que, afinal, para criticar também vê o programa (“conhece os teus inimigos”, diz a Bíblia) e que, passado uma década da explosão dos “reality” shows (embora a palavra “reality” possa vir entre aspas), a novidade transformou-se numa enorme e evidente banalização. Não, estou nesse tipo de posicionamentos. Primeiro, porque maior crítica, ácida e sarcástica (ou não estivéssemos a falar de Bruno Nogueira), vem de um outro reality show (ou anti-reality-show?), “O último a Sair”. Em segundo lugar, a minha intenção é desmembrar o simbolismo que está por detrás deles, não só em termos da “fama fácil” – até porque condeno “moralismos económicos” – ou da “baixa cultura” que eles reflectem e auto reflectem mas em termos da mitologização, anterior aos efeitos e representatividade sócio-cultural, que lhe subjaze.

“Perdidos na Tribo” é um programa que, grosso modo, procura demonstrar o quotidiano de pessoas famosas numa tribo africana. Ora, é evidente que existem vários factores aqui em jogo. Não se trata de pessoas “comuns”, no sentido de não serem publicamente (re) conhecidas mas sim, famosos/as. Há um sentido perverso que interliga o reconhecimento social e a classe (média, alta, artística) e que lhes confere uma identidade de autoridade social. Em sentido contrário, temos a tribo; com hábitos culturais intraduzíveis – pelo menos pela “nossa” grelha cultural ocidentalizada, eurocêntrica, masculina, branca, heterossexual, etc, desprovidos/as de sinais visíveis de riqueza – embora a riqueza tenha vários sentidos (i.e., o elo de coesão grupal) e muitos objectos (i.e, as jóias) possam simbolizar riqueza dentro do sistema social da tribo -, em suma, a relé africana que, coitada, nunca evoluiu. A própria fotografia do programa é sinal desse facto. Os/As famosos/as em grande plano, os/as nativos/as distantes., com destaque para o chapéu tigresa (provavelmente de pele verdadeira) de José Castelo Branco, a Grace Jones portuguesa, pois traduz exactamente o sentido perverso de todo este esquema.

Quando se olha para o passado, parecem-nos distantes os episódios mais atrozes da História da Humanidade como a ascenção e o domínio nazi-fascista na Europa tendo o seu pico mais horrendo o Holocausto nazi, como símbolo máximo da barbaridade humana. Acha-se que esses episódios estão bem enterrados lá no passado para onde nunca se pode (ou deve) voltar. Foi apenas uma fase, já passou. Não. Não passou.

Olhando para a Europa assiste-se a um crescimento e fortalecimento da direita neoliberal e do fascismo disfarçado de democracia, potencializado por uma crise económico-financeira (politica, social… civilizacional?), paradoxalmente erigida pela ambição e estratégias (i,e. a concessão de créditos a pessoas que não poderão nunca pagar, ou numa perspectiva mais global, a países, i.e., FMI) dos bancos, agências de rating e empresas internacionais que lucram com a falência dos próprios Estados. Uma crise adensada pelas revoluções sulistas (Egipto, Iémen, Tunísia, Líbano) e pelos fantasmas da imigração, daí o silêncio europeu perante essas mesmas revoluções - de facto, quem cala consente, neste caso, com as ditaduras (santo petróleo).

As crises têm o efeito de potencializar estes caos, animado por discursos populistas, xenófobos, racistas, homofóbicos. Quando as bases, isto é o dinheiro, falham – e é discutível esta ideia de colocar o dinheiro como necessidade, fundamental claro, na qual outras necessidades se alicerçam -, não há pachorra para imigrantes ou religiões diferentes.

Esta intolerância é expressa de várias formas, um pouco por toda essa Europa que se diz democrática, plural e tolerante: na expulsão de imigrantes e ciganos/as do território francês por Sarkozy (este já tinha proibido o véu islâmico argumentado que era um símbolo de opressão patriarcal quando, na verdade, o que estava realmente em causa era este ser um símbolo do Islão) e o crescimento da extrema-direita com o fenómeno “Le Pen”, agora pela controversa filha, á semelhança da Áustria, Bélgica e Dinamarca; as relações de Berlusconi com os imigrantes ilegais da Tunísia, o mesmo Berlusconi que recebe o apoio da população italiana (e Vaticano) quando acusado de ter tido relações sexuais com uma prostituta menor (“ela provocou”, “ela também queria o dinheiro”, “julguem-no só por corrupção”); os ataques a Schengen e novas incursões contra um dos pilares mais característicos, definitórios e, porventura, fortes da UE sem fronteiras terrestres; o sinistro acto de se deixar 61 pessoas, imigrantes do Magrebe, a morrerem lentamente, à sua sorte e à deriva; o episódio ardiloso dos “Verdadeiros Finlandeses” que teve como efeito perverso uma ligeira demonstração do nacionalismo bacoco português com um vídeo patético e erróneo sobre os feitos do “povo lusitano”; a perseguição de portugueses/as em território luxemburguês (o que dirá a extrema-direita portuguesa disso?); a liberdade de expressão húngara (ou falta dela…). Poder-se-ia invocar até o fascínio pela monarquia (i, e. o casamento de Kate & William) ou sair um pouco pela Europa (i, e. a morte de Bin Laden, os novos racismos com Donald Trump a vociferar contra os chineses e as suas carismáticas lojas ou o episodio da nacionalidade do Super-Homem que elevou para o dobro o suicídio de rednecks na ponte Golden State em S. Francisco). Enfim, o fascismo não está assim tão longe. Afinal de contas, a cidadania europeia, que parecia tão firme e hirta, é frágil e efémera.

Qual a ligação entre “Os Perdidos na Tribo” e esta Europa sem Rumo, que nunca, em tão pouco tempo de existência, viu a sua legitimidade posta em causa? Sintoma do ainda etnocentrismo europeu ou hipocrisia declarada de um conjunto fragmentado que se alia para dar uma imagem de um grupo coeso (e impor a sua visão etnocêntrico a outrem) quando, na verdade, tem os seus próprios problemas (graves!) internos? Uma Europa perdida com gente perdida na Europa.

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