sábado, 9 de julho de 2011

A marcha


Desde pequeno que, tal como certamente vocês – gays ou não -, tenho uma imagem das marchas LGBT como um festival de exuberâncias, uma promiscuidade sexual em tom de parada, um degredo exibicionista, ou isto tudo ao mesmo tempo.

Esta ideia, que eu tenho (ou melhor, tive) e certamente vocês tem, não é inocente nem espontânea; ela é fruto de uma estrutura sócio-cognitiva, construída tacitamente por um conjunto de dispositivos (como por exemplo, o poder político ou os media) e transmitida aos/às heterossexuais que por sua vez transmitem a gays (ou vice-versa) no sentido da abjecção dos “prides”. Na verdade, como se pode ter uma ideia assertiva sobre algo em que não se está inserido?

Importa interrogar: porque essa aversão? Porque é que, um conjunto de cidadãos e cidadãs, exigindo igualdade de direitos e usufruindo da sua liberdade de reunião e/ou expressão (como os/as católicos/as aquando da vinda do Papa, os skinheads nas suas “white pride”, os/as trabalhadores/as reivindicando melhores salários) suscita tanta aversão e ate mesmo ódio?

Ora, tal como muitos de vós, gays, eu também cresci numa sociedade que discrimina os gays de várias formas. As mais directas e senso-comunizadas traduzem-se no insulto e na agressão (culminando em casos extremos em perseguição e morte); as mais implícitas e simbólicas – isto é, as mais difíceis de provar ou combater – incluem, entre muitas coisas, a heteronormatividade. Passo a explicar:

É uma inevitabilidade, até histórica (vamos assumir esse “facto” nestes termos essencialistas), que os homossexuais são estatisticamente uma minoria. Esse “facto” produz uma sensação de solidão que acompanha os gays desde tenra idade após a percepção da sua identidade. Não basta haver um estigma (inclusive legal) e ser-se minoria, ainda temos que nos sentir sós. Pior, essa solidão é acompanhada de falta de referências legitimadas (figuras públicas, políticas, etc) que, nos últimos anos, tem sido culminada mas não invalida de os gays se sentirem desacompanhados.

De facto, um negro nasce numa família negra; uma mulher tem, à partida, mulheres na família, contudo, um gay, a somar a todo o discurso de “antonomização” “anti-familia”, nasce numa família onde é muito provável que a esmagadora das pessoas seja heterossexual, e homofóbica. Ou seja, nem a própria família é, grosso modo, um elo seguro; mesmo quando aceita, aceita sobre determinados parâmetros que não encontram eco nos homólogos heterossexuais.

A somar a toda esta situação existe uma visibilidade acrescida (tácita ou não) da heterossexualidade, isto é, uma “promoção” heterossexual. Das discotecas às danças de salão, do cinema ao facebook, há uma tentativa subtil de inculcação da heterossexualidade e até os próprios gays contribuem para tal (um simples mas bom exemplo: as fotografias de beijos heteros a amigas no facebook).

De facto, percebe-se pois que um dos graves problemas que os gays tenham que enfrentar é a falta de visibilidade.

Assim, a visibilidade é tanta que a Igreja, numa altura em que a homossexualidade era um crime, queimava os processos por sodomia precisamente para invisibilizar a própria homossexualidade. Na melhor das hipóteses, diz-se, às vezes com as melhores das intenções, que “ninguém precisa de saber que és gay” ou “o que fazes, faz dentro de quatro paredes”. Imaginem dizer isto a heterossexuais…

Ora, se o problema é a falta de visibilidade, o que representam as marchas? Visibilidade. É uma visibilidade frágil? Claro que sim; a representatividade da diversidade LGBT, apesar de significativa, não se resume ou se esgota na marcha, mas certamente é relevante num contexto estrutural de opressão.

Quando alguém critica as marchas, nos termos que coloquei logo no início do texto, fere a visibilidade, quer ocultar os homossexuais, criar um estigma que funcione como uma forma de auto-exclusão e marginalização (um pouco como aparecer num telejornal a prestar depoimentos de cara tapada e voz distorcida).

Quem critica, desconhece que na marcha vão, por exemplo, heterossexuais (homens e mulheres), familiares de homossexuais (mães, pais, filhos até), etc. O discurso da “pluma”, que a própria homofobia e sexismo da “comunidade” LGBT contribui para ostracizar, perde o seu valor a partir da percepção da diversidade da marcha, mesmo que a argumentação homofóbica assente mais numa conveniência do que num facto (“nós sabemos que assim é mas como somos rabugentos e teimosos queremos espalhar o ódio contra vocês na mesma”).

Quem critica as marchas gay tem que criticar as marchas feministas, as marchas do black pride, as marchas pacifistas, ecologistas, da legalização da marijuana, dos/as vegetarianos/as ou da luta contra o cancro. Tem que criticar as marchas anti-gay do Uganda à Europa do Leste, com a certeza de que uma marcha gay, ao contrário da marcha anti-gay, não interfere ou influencia ninguém; não proíbe ninguém de ser o que quer que seja; não incita ao ódio.

A marcha, tendo o seu início histórico nos motins de Stonewall em 1969 nos EUA, representam a luta contra a opressão da homofobia, o poder público – ainda hoje nas mãos do patriarcado – de afirmar “eu sou gay, e gosto!”. Será uma forma de exibicionismo? Se os gays querem igualdade e já que não existem marchas hetero, porque é que os gays tem essa necessidade? Tem vindo a argumentar nesse sentido. De facto, o que é os/as heteros reivindicariam? Serão eles/as oprimidos/as? Não podem adoptar, casar? É – ou alguma vez foi – crime ou doença ou pecado ser-se heterossexual? São expulsos de casa ou do emprego por serem heterossexuais? Que insultos lhe dirigem? Uma marcha “hetero”, Isso sim, seria show off; já basta os comentários de assédio e autocontemplação das conquistas masculinas.

Eu hoje não vou à marcha, por conta da minha personalidade dependente (não irei sozinho) mas qualquer crítica – seja de heteros ou gays - às marchas é uma crítica sem sentido, sintoma de um desconhecimento e desinformação totais e perniciosos. Qualquer e toda a crítica às marchas são um atentado à visibilidade gay e, de modo mais incisivo, aos próprios gays. Na verdade, quando os gays marcham, a homofobia não marcha.

P.S. Quando falo em gays, falo de uma forma mais abrangente de lésbicas, bissexuais ou transexuais.

1 comentário:

Christopher disse...

Adorei o post. Efectivamente ainda existem mordaças nesta sociedade, correntes que têm que ser quebradas e as marchas não são uma questão de exibicionismo na minha opinião mas sim de afirmação e reivindicação de direitos. Mais um follower xD