quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Para o diabo que vos ranking


Todos os anos a mesmíssima coisa, tão certo como o Natal calhar a 25 de Dezembro (variando apenas a existência ou não do seu respetivo subsídio) ou o Alberto João Jardim continuar a governar a Região Autónoma da Madeira (sempre com buraco, variando a descoberta ou encobrimento do próprio, mas nunca mudando a impunidade do dito cujo…). Falo evidentemente dos rankings das escolas que anualmente fazem as delícias dos/as voyeurs e dos/as opinion-makers, põem à tona a preocupação dos/as encarregados/as de educação e consequentemente dos/as professores/as e marcam o debate político informal (o blogue, o jornal, a rede social). Igualmente, todos os anos o rejubilar desdenhoso das escolas privadas sobre as escolas estatais (exceptuando quando as madalenas ofendidas exigem financiamento do erário público), todos os anos as retoricazinhas de vão de escada sobre a maravilha do privado, para um povo privado de si mesmo, todos os anos as más interpretações dos resultados (ou aquilo que em pedagogia se denomina de “performance”). Apetece exclamar: para o diabo que vos ranking!

Ora, para nos situarmos e começarmos por destruir algumas falácias que entorpecem o debate, não se deve nem se pode confundir “performance” com pedagogia propriamente dita, ou dito de outra forma, não se deve nem se pode misturar output com input (como se a explicação de uma realidade estivesse meramente nos seus efeitos ou vice-versa). E porquê? Pelo simples facto de não se poder justificar a suposta superioridade das escolas privadas por si mesmas - ou com base numa espécie de mérito, desempenho ou esforço inerente e inato – mas sim de condições objetivas, estruturais e extrínsecas que as fazem, por norma, liderar os rankings das escolas, sabendo claro que essa história dos rankings revela precisamente uma “necessidade” externa e ampla de competição e portanto é discutível (até porque se deve interrogar se, legitimando-se a competição, se trata de uma concorrência leal ou desleal). Em suma, parte-se do equívoco que as escolas privadas são melhores devido a uma ontologia da sua essência, uma espécie de código genético que as sustenta, uma característica intrínseca que marca a sua “natural” superioridade. Nada de mais errado.

A escola pública, porque pressupõe igualdade (de acesso, de oportunidades, de garantias, etc) serve particularmente as classes socialmente desfavorecidas conjuntamente com uma vasta e por vezes relutante classe média e uma parcela residual q.b. de classes médias-altas. Ora, as classes socialmente desfavorecidas são, grosso modo, desprovidas de capital económico mas também capital cultural e social; capitais esses essenciais para a formação e ascensão de um/a e qualquer sujeito/a no sistema educativo – e por extensão, social, económico e profissional – e, segundo as escalas, essenciais para a avaliação de qualidade dos ditos rankings. Em súmula, o privado não é melhor por obra do espírito santo, é melhor pela proveniência social dos alunos e das alunas, por norma, bem dotados/as de capitais e recursos (e quiçá, cunhas) que lhes permitem singrar. O discurso tresloucado da meritocracia tem rédeas curtas e tal, atenção!, não é negligenciar a importância da ascenção social e a valorização do empenho mas reconhecer que existem fatores que lhe são consubstancialmente externos.

Ricardo Paes Mendes usa uma ilustração ótima:

«(…) se alguém afirmar que os apoios públicos a estágios para recém-licenciados são um sucesso porque os estagiários encontram emprego ao fim de pouco tempo, devemos perguntar-nos se os estágios não estão a ser dirigidos para indivíduos cujas licenciaturas de base garantem à partida maior empregabilidade»

Outro fator está na origem desta disparidade público-privado e deve-se, como refere Nuno Serra evocado por Francisco Louça, à divergência geográfica. Na verdade, a escola do Estado encontra-se distribuída por todo o país, ao contrário da escola privada localizada essencialmente no perímetro litoral (área geográfica produtora de lucro e onde se localizam grandes partes dos serviços). De facto, no interior são 48% de escolas públicas contra 22% do privado. Tendo em conta que o privado encontra-se localizado fortemente no litoral, desresponsabiliza-se assim da garantia de um ensino universal e gratuito (aliás, nem é esse o seu desígnio já que o seu verdadeiro intento é a produção de lucro), percebe-se que a proveniência social dos/as estudantes continua a fazer sentido como critério magnus de verificação de qualidade dos rankings mesmo que disfarçada de explicação naturalista da ontologia do privado.

Outra questão prende-se exatamente com a natureza dos rankings e o sistema de avaliação. Serão os exames o único indicador da qualidade do desempenho das escolas? Os resultados, que muitas das vezes nada tem que ver com as aprendizagens (quem, - como a esmagadora maior parte das pessoas – andou na escola sabe que decorar e despejar, muitas vezes no dia anterior aos exames, é a regra), valem mais do que os processos de aprendizagem, formais e informais, que tem lugar na escola? Parece-me pois que a performance e o poder estatístico, porque são, á partida, neutros, procuram elucidar positivamente a coerência da avaliação. Erro crasso. O resultado não vale mais do que o processo. E, antecipando aquilo que os/as arautos/as da objetividade possam rebater, a subjetividade também se avalia. Pois então que variáveis específicas para avaliar? Tendo em conta o que foi dito anteriormente: por exemplo, o background social, económico, profissional e educativo dos/as encarregados/as de educação (ou não fossem esses critérios definitórios, embora limitativos, de “classe social”), as condições de conhecimento e acesso, por exemplo, a bens culturais ou espaços para estudo ou ajuda ao estudo, a organização da escola e a constituição das turmas, a qualidade do ensino dos/as professores/as (subentende-se que a relação cognitiva com os conteúdos é muitas vezes e implicitamente assumida como distanciada da relação com os/as professores/as o que passa por ser outra arteirice), a relação com os/as colegas, a geografia da escola, etc. Aliás, como avaliar alunos/as cujo encarregados/as de educação tem o dobro (ou o triplo, ou o quadruplo, ou…) do salário do/a professor/a que atribui a nota? Como avaliar a coerência, a fiabilidade e a justeza da nota atribuída?

O cheque-ensino tem sido outra questão que merece ser debatida. Acho particularmente interessante quando os/as neoliberais apregoam as boas novas do cheque-ensino com o lugar-comum da “liberdade de escolha”. Pergunto-me: se houvesse a possibilidade de os/as encarregados/as de educação escolherem a escola da sua “prole”, escolheriam as do setor público? Penso que não, por questões que são óbvias, nomeadamente, a ideia enganadora, e desconstruída aqui, de que as privadas são melhores ou o status simbólico (e ilusório) que a frequência nas privadas concede às famílias dos filhos e das filhas que as frequentam. Ora, importa refletir: isso não a) minaria a própria liberdade de escolha? b) pauperizava ainda mais o setor público pondo em causa a igualdade de acesso? Contudo, é isso que tem acontecido com uma parte da classe média iludida pela publicidade enganosa.

Todos os anos a mesmíssima cegueira de quem não vê – ou não quer vê – o que parece ser evidente e cristalino como água: embora na esteira do desenvolvimento da escola pública, com as suas crises e consolidações, o privado não é melhor. Apenas é socialmente construído como melhor (pelos media, por exemplo). Na verdade aquilo que parece natural, é de facto profundamente artificial. E isso não é privado no sentido de secreto, dissimulado, obscuro, encoberto, mas sim público no sentido de manifesto, notório, conhecido, patente.

2 comentários:

Caenche disse...

Se foste tu que escreveste isto, tenho-te a dizer que está brutal! xD

Lobby Queer disse...

Todos os textos do blogue são da minha autoria. Quando não são referencio!