segunda-feira, 30 de abril de 2012

Insólita Frustração

Parece que nos últimos tempos os homofóbicos (ou para usar um termo mais corriqueiro porque isto do “socialmente correto” é uma chatice: a “homofobicagem”) decidiram sair do armário se, em boa verdade, alguma vez nele estiveram. Já não bastava a neurose esquizóide de José António Saraiva e os seus fetiches homoeróticos tensionais de cariz pederástico, tinha que se juntar à festa o já “nosso” conhecido (ou como se diz na gíria, rodado) José César das Neves que, para quem não sabe, está para os gays em Portugal como o Adolf Hitler para os judeus ou a Merkel para os gregos. Uma pessoa dotado do seu perfeito juízo racional poderia simplesmente ignorar e não dar azo a controvérsias que precisam da contra-reação para se visibilizarem mas também considero que ignorar é reificar a legitimidade dos discursos alheios. Ou como diz o povo, quem cala consente e uma mentira contada muitas vezes ganha contornos de verdade. Em causa está um artigo (um dos seus muitos artigos sui generis) que José César das Neves escreveu no “Diário de Notícias”. O mesmo começa o artigo em tom sarcasticamente perplexo. Refere o dito cujo que é surpreendente que a questão da homossexualidade, assunto do foro privado como sempre foi (excepção feita às leis contra a prática homossexual, claro), tenha subitamente adquirido um determinado status quo (no caso de José César das Neves, status “cu”) no sentido da sua normalização. De facto, pensar que os maricas e as fufas são pessoas como outras quaisquer é algo bastante aterrizador principalmente quando esses maricas e essas fufas, minoria que de tão parca merece tamanha problematização, elimina a heterossexualidade como referência legal com o acesso ao casamento civil. Who these faggots think they are? Nesse sentido, já nos podemos dar por vitoriosos tal é o ressentimento. Mas a questão que merece a minha particular atenção é outra. Passo a transcrever:
“Alguém que é desprezado por ser judeu, mulher ou negro sofre por algo inevitável, que não depende da sua escolha. Mas isso é muito diferente da crítica contra atitudes pessoais, como cristão, comunista ou engenheiro. Em ambos os casos, a injustiça é comparável, mas no primeiro existe pura arbitrariedade, enquanto o segundo visa actos da responsabilidade da pessoa, que deve assumir as suas escolhas. Como diz o velho provérbio jurídico, "ninguém é preso por ser ladrão, mas por ser apanhado a roubar".”
A estratégia discursiva passa por rebuscar o histórico e eterno binómio “homossexualidade = escolha” para dela se atribuir uma determinada problematização moral ao mesmo tempo que distancia a identidade gay da identidade mulher ou da identidade negra (que é como quem diz, as mulheres e negros merecem direitos porque não tem culpa da sua condição, os gays não!). João César das Neves desconhece portanto que nem o sexo biológico nem a cor de pele são, hoje, caraterísticas que possamos admitir que são imodificáveis (e de facto não vejo nenhuma Igreja a tentar “curar” negros ou ateus ou minorias como os católicos que vão à missa). Mas presumindo que o/a leitor/a não é entendido/a em histografia gay passo a elucidar: na história das discursividades anti-gay e pro-gay (passo a dicotomia), os anti-gay e particularmente aqueles/as que são movidos por ideologias religiosas, defendem que a homossexualidade é uma escolha. Tal atribuição ao campo da escolha permite responsabilizar o indivíduo e atribuir-lhe uma carga moral. Algo do género: “se escolheste ser assim é porque quiseste; podias não ter escolhido”. O seu inverso, isto é, a ideia de que a homossexualidade é uma caraterística resultante de uma condição (como ter olhos castanhos por exemplo) e portanto a ideia de que a orientação homossexual estaria ligada a um qualquer dispositivo biológico (e vamos abstrair-nos do facto de existirem caraterísticas que trazemos de infância que, não sendo biológicas, são imutáveis como a linguagem), é o maior argumento dos ativistas gays e das ativistas lésbicas. Compreende-se porquê. Para lidar com tamanho ódio contra os/as homossexuais, admitir que o desejo homossexual não depende do indivíduo é automaticamente desresponsabiliza-lo. “Se ele/a já nasceu assim que culpa tem?”. Esta concepção é tão nítida que quando se refere que a homossexualidade é uma escolha; imediatamente um gay ou uma lésbica com o dedo em riste ripostará: “não é uma escolha! Eu não escolhi ser assim!”. Ora, a construção deste binómio tem que ser desconstruída urgentemente. Em primeiro lugar, porque a aproximação à gramática genética é meio caminho andado para a patologização da homossexualidade (“o gay já nasceu assim como um portador de Síndrome de Down também”). Na verdade, foi através do discurso beaviouriano da “biologia é destino” (coitada da Simone que nesse tempo ainda não era nascida…) que a homossexualidade emergiu no discurso médico em 1870. Tal concepção biocrática originou inequivocamente o despertar cínico da semi-tolerância; em segundo lugar porque é ridículo atribuir ao conjunto de desejos ou práticas sexuais uma raiz biológica (é a prostituição hereditária? Está nos meus genes que quero fazer sexo na praia?) quando não existe nada que seja mais sócio-construído do que a sexualidade pautada por valores, práticas, sentidos, experiências, discursos, regulações, normatividades, etc. Da mesma forma, podemos dizer que a heterossexualidade é natural se constantemente reafirmamos a necessidade da sua perpetuação? Aliás, a própria nomenclatura da heterossexualidade como “o modelo” arrasa com qualquer espontaneidade natural da mesma. A esse respeito, recordemos o discurso de Manuela Ferreira Leite aquando da sua interrogação da sua opinião sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo:
“eu não sou suficientemente retrógrada para ser contra as ligações homossexuais, aceito, são opções de cada um, é um problema da liberdade individual pelo qual não vou pronunciar: pronuncio-me sim, contra tentar-se atribui o mesmo estatuto àquilo que é uma relação de pessoas do mesmo sexo ao estatuto de [uma relação entre] pessoas diferentes (…) acredito que esteja a fazer uma discriminação porque é uma situação que não é igual (…) a sociedade está organizada e tem determinado tipo de benefícios, regalias e até de medidas fiscais no sentido de promover a família e a família tem como objectivo a procriação (…)”.
De facto, precisamos de promover o que é natural? Promoveremos os lírios! Promoveremos a gripe! Promoveremos a imbecilidade do César das Neves. Já Foucault – o bom e velho Foucault – dizia na sua obra “História da Sexualidade – A Vontade de Saber” que não devemos preocupar-nos em elaborar minuciosamente ontologias e regimes de verdade mas sim suster-nos nas descontinuidades e falácias do discurso que pretende ser o princípio universal. Nesse sentido, temos que romper com a concepção do discurso biologizante e reapropriar-nos do discurso de outrem, isto é, o discurso da escolha. Seguindo esta linha estaremos em condição de (re) afirmar que se a homossexualidade é uma escolha é tao legítima como escolher comer batatas assadas com bacalhau ou ir ao um restaurante chinês; como escolher ter ou não ter filhos; como um homem escolher ter ou não ter sexo oral com uma mulher; escolher votar ou não votar num partido de extrema-direita ou rezar ou não rezar a Deus; ler ou não ler a crónica do César das Neves (ou como escolher ou não escolher uma escola privada, como certamente concordaria o Governo). Enfim, afinal de contas, a liberdade de escolha é um princípio basilar das sociedades democráticas. Nesse ponto, concordo integralmente com José César das Neves, embora lamentavelmente não da forma como ele gostaria que concordasse (é nesta altura que cedo à tentação de colocar um smile no fim da frase). Mais adiante, outra frase suscita o meu interesse:
“Chamando "homófobo" a quem quer que, sem prejudicar ninguém, considere a prática uma perversão, confundem-se as coisas e comete-se uma outra discriminação, aqui por delito de opinião.”
Já muito disse eu num outro poste sobre “homofobia” e “liberdade de opinião” mas novamente concordo inteiramente com César das Neves. Na verdade, não se pode restringir alguém de não concordar com a prática heterossexual. Devemos sim tolerar os praticantes da heterossexualidade (como por exemplo aqueles/as que praticam o coito interrompido) mas devemos ter liberdade (a mesma que César das Neves procura vedar aos gays e às lésbicas) de não concordar com as práticas heterossexuais. Porque deveríamos? É legítimo um homem violar uma menina – como a sua própria filha – para manter a reprodução? É legítimo um heterossexual legalizar a poligamia para aumentar as probabilidades de reprodução? Na verdade, se concedemos liberdade de expressão a um homofóbico porque não a um assassino (Brievik, olá!), a um padre abusador de crianças, a um skinhead espancador de pessoas ou a economista espalhador de ódio. Na mente rebuscada dos homofóbicos, existe uma separação idílica entre a homofobia legítima e a homofobia ilegítima assim como os assassinos legítimos e os assassinos legítimos; o anti-catolicismo legítimo e o anticatolicismo ilegítimo. Ora, dizer-se que a homossexualidade é uma aberração e espalhar esta ideia doentia como um vírus é, além de irracional e ultra-subjetiva (está-se a adjetivar algo; é o mesmo que dizer que macarrão é uma aberração porque não gosto), equivocada. A ideia de que o discurso é neutral é profundamente errada. Não existem discursos neutrais pois todos os discursos produzem efeitos nem que seja silêncios. Mesmo quando se opina e se remata com um “é apenas a minha opinião”, já se está a influenciar outrem. Nesse sentido, dizer que a homossexualidade é uma perversão como um direito a uma opinião (dizer que o sol é castanho com bolas cor-de-rosa ou Jesus virá à Terra um dia) é simultaneamente ser a favor da sua patologização, criminalização, etc. em suma, suscitar o ódio contra outros seres humanos; a extinção das pessoas homossexuais. Ou vão-me dizer que uma pessoa que acha a homossexualidade uma perversão concorda com a adoção de crianças por parte de casais do mesmo sexo? E já agora, ocorreu-me: será que César das Neves considera o sexo anal heterossexual uma perversão? Pois, pormenores… Esta discursividade é o mesmo que dizer que aceitar que os gays respirem, tudo bem (doutra forma seríamos anti-vida), agora conceder-lhes os mesmos direitos quando já tem os mesmos deveres (afinal de contas até os “doentes” tem deveres…) é que não. Tem que haver uma escala hierárquica e os gays tem que estar na escala mais baixa e (mais importante que isso) ter consciência do seu estatuto. Nada de andar por aí a dizer-se que se é gay nessas marchas exuberantes e ultra-sexuais (excepção feita às marchas anti-gays como na Rússia, Letónia ou (pasme-se) Portugal (!) assim como às marchas católicas ou à beatitude do Carnaval do Rio de Janeiro). Como se sabe, a homossexualidade é um assunto privado como o “estado civil” no Bilhete de Identidade, o casal heterossexual na rua aos beijos e o José César das Neves porque afinal de contas não precisamos de saber que o mesmo é heterossexual (cof, cof). Como dizia no início, parece que a homossexualidade deixa de ser do escrutínio privado quando alguém se revolta por ela reivindicar o espaço público e… (tchan!) a retira do privado. É uma situação semelhante àqueles/as que referiam que existia coisas mais importantes para resolver do que o casamento entre pessoas do mesmo mas de artigo em artigo, de coluna para coluna, só falavam disso. Aliás, basta fazer uma contagem das temáticas exploradas por José César das Neves e trazidas a público pelos media para perceber este insólito interesse no tema; uns media que, a ter em conta a liberdade de opinião tao apregoada por César das Neves, se coíbe de apresentar contrarrespostas mesmo que transgressivas (imagino como sofrem todos/as aqueles/as que são contra a heterossexualidade e não se podem manifestar pela intolerância dos media e censura do “socialmente correto” e até mesmo por parte dos/as ativistas gays/lésbicas). Em suma, insólita inversão esta. De pessoas de bem, preocupadas com a dignidade da vida humana, com os elevadíssimos padrões da comunidade, a homofobia tornou-se uma caricatura de si mesma, apregoando um ultra-relativismo gritante e um ódio camuflado (na verdade, demasiado explícito) a pessoas que escolhem não seguir os seus padrões morais mas sim viver as suas vidas sem interferências nas vidas legítimas de outrem, esperando com isso, claro, algum resultado palpável que, mesmo em contexto de crise e neoconservador, continua a ser aquele que toda a gente conhece: gays a marcarem pontos, a homofobia a chorar na bancada. Insólita frustração.

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