terça-feira, 6 de outubro de 2009

O casamento e os modelos do "dever ser"



Pedro Vaz Patto

Público, 20090909

Quando foi sugerido que a questão da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo fosse submetida a referendo, como expressão mais fiel da legitimidade democrática, partidários dessa legalização disseram que a questão teria de ser subtraída à vontade da maioria, por mais expressiva que esta fosse, uma vez que dizia respeito ao princípio constitucional básico da igualdade e da não-discriminação. A questão estaria já decidida a partir do momento em que a Constituição veio incluir a orientação sexual entre os factores explicitamente referidos como motivo de indiscriminações inadmissíveis. Parecia, até, que o assunto estava encerrado no plano da discussão da política legislativa, em nome da superioridade dos princípios constitucionais.

O recente acórdão do Tribunal Constitucional n.º 359/09 vem deitar por terra esta argumentação. De acordo com esse acórdão, o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado não impõe a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Fica, assim, aberto o campo de discussão no plano da política legislativa. É certo que não houve unanimidade entre os juízes (em cinco, dois votaram vencidos), mas o facto de se tratar de questão controversa só reforça a ideia de que não pode o argumento da inconstitucionalidade servir de barreira à discussão de política legislativa relativa a esta questão.

E não pode servir de barreira à possibilidade de submissão desta questão a referendo. A superior consideração da legitimidade democrática aconselha essa submissão. Trata-se, como a questão do aborto, de uma questão de consciência transversal aos eleitores dos vários partidos políticos. Ainda que seja incluída no programa eleitoral de um partido, não pode dizer-se que a generalidade dos eleitores desse partido a sufrague, uma vez que serão normalmente outras questões, que mais preenchem a agenda política, a pesar na sua opção de voto.

Numa matéria de tão grande significado ético, cultural e civilizacional, onde se joga o modelo de referência de família como núcleo social fundamental, onde se pretende alterar um modelo secular, seria inadmissível que uma opção tão relevante fosse tomada em função de estratégias políticas ou modas ideológicas e contra o sentir da maioria do povo, como o vêm revelando várias sondagens. Se é o povo que está supostamente "atrasado", pois que se aproveite o referendo para o "esclarecer". Mas que não se decida contra ele. Juiz


Querido PVP,

O PVP continua a defender o referendo para o casamento entre pessoas do mesmo sexo com unhas e dentes (e mais alguma coisa, não sei…), como se um assunto das minorias, que diz respeito à vida privada das pessoas (aliás, como defendeu o PVP), que se prende com questões relacionadas à dignidade humana e aos direitos civis de todos e todas possa ser legitimado à vontade das maiorias. Imaginemos que há um referendo sobre a vida de um homossexual: “acha que os homossexuais devem ser mortos com pela guilhotina ou com um tiro na cabeça?” Está a ver? Existem coisas que não devem ser referendadas. A igualdade e a liberdade (quando esta não afecta a liberdade das outras pessoas), aliás conceitos constitutivos da própria democracia, não podem ser referendadas.

Relativamente à comparação com a questão do aborto, no sentido de haver uma necessidade de referendo em ambas as questões, passo a citar Rui Tavares, que escreveu, no seu blogue, isto:

“Já agora, aproveito para dizer que sou contra o referendo neste caso. Estou à vontade, porque fui sempre a favor do referendo do aborto, apesar de isso ter dificultado a mudança no sentido em que eu pretendia (e muitos dos meus amigos de esquerda serem contra).
A diferença está nisto. No caso do feto, há uma decisão a tomar sobre o estatuto de um terceiro, ou de um potencial terceiro, cuja configuração é ambígua por parte da sociedade. É parte da mãe? É um ser autónomo? Se sim, merece a protecção jurídica da sua existência? Creio que faz sentido entender o que a maioria das pessoas pensam sobre isto, e que isso se entende indirectamente através do referendo.
Quanto ao casamento gay, não há tal ambiguidade. Trata-se de duas pessoas adultas e livres. A única razão para lhes negar o direito de casarem com quem amam é considerar que se tratam de cidadãos de segunda. Foi isso que ocorreu em tempos. Hoje vivemos nos resquícios desse tempo, mas sem qualquer sustentação legal, política ou científica que justifique tal posição. Pelo contrário, é aberrante a todos a ideia de que um gay seja um cidadão de segunda. Não sei então como poderemos ter as maiorias a decidir o que podem ou não fazer cidadãos na plena posse dos seus direitos que não prejudicam a liberdade de outrem. Não vou referendar o meu casamento, não vejo por que os meus concidadãos gays terão de passar por isso.”

Por outro lado, espanta-me que um assunto que não mereça tanto destaque seja constantemente mencionado por PVP. Então não temos a crise económica para resolver? E depois dela? Ainda não temos que focar os milhões do Cristiano Ronaldo e a abrir os telejornais com tal feito à Humanidade? Contradições…

De referir que o TC não deu um “não” ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Pelo contrário, encaminhou a questão para o campo da política legislativa, como referiu e bem o próprio PVP. E note-se: não encaminhou a questão para uma proposta no sentido de salvaguardar “a expressão mais fiel da legitimidade democrática”: o referendo. Encaminhou-a, repito, para O CAMPO DA POLITICA LEGISLATIVA.

Contudo PVP, não se guie muito pelas sondagens, poderá vir a ter uma surpresa.

Por conseguinte, gosto quando se refere a esta temática como sendo uma «matéria de tão grande significado ético, cultural e civilizacional, onde se joga o modelo de referência de família como núcleo social fundamental, onde se pretende alterar um modelo secular».

Ui, meu deus, vai cair o Carmo e a Trindade. É o Apocalipse! Quando se legalizar o casamento para pessoas do mesmo sexo, os rapazes vão deixar de ir ao buraquinho (o buraquinho “correcto”) das meninas, vai deixar de haver crianças, é uma tragédia! Já não há um modelo referencial. É estranho porque os australopitecos não precisavam de um modelo para se reproduzirem. Um modelo, por sinal, cultural e anti-natural. Um modelo que, nos seus primórdios, servia não só as relações heterossexuais como as relações homossexuais.

A única alteração indignificante que vejo aqui é a alteração do próprio conceito de identidade homossexual. Uma realidade (que embora não concebida como identidade mas como actos) que existe desde os primórdios da Humanidade e que é alvo de “curas”, terapias, etc.

Para finalizar, reafirmo: “seria inadmissível que uma opção tão relevante fosse tomada em função de estratégias políticas ou homofobias arcaicas e contra o sentir da democracia”.

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