quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Resposta a Café Odisseia parte II (até sexta tenho tempo...)




Como o Hugo deve saber, só muito recentemente a Humanidade veio a aprender que Ser Livre é ser responsável consigo mesmo e com os outros - mas é, antes de mais nada, Ser Livre. O Direito Penal desses tempos castrava, matava, queimava homens e mulheres por crimes como sodomia, lesbianismo, etc.
Essas acusações conheceram fundamentos racionais. Não culpe a Igreja Católica por existir num mundo de Homens com graves defeitos.
Já Aristóteles considerava a homossexualidade "contra natura", também o considerou Cícero, e muitos outros grandes filósofos e autores (Marx, Lenine, Lutero, Calvino, por exemplo) que mudaram a forma como entendemos o Homem.
Não se esqueça que conhecidos católicos até foram conhecidos por terem relacionamentos homossexuais. Muitos deles ocuparam cargos altos na Idade Média. De Reis a Bispos, passando por Papas.

Contextualização

Não pense que me ilude seguindo por uma lógica gay-friendly do tipo “ai vocês rabetas sempre existiram e eu reconheço isso”.

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que a consideração da homossexualidade como uma realidade anti-natural é ilegítima, sobretudo porque quem utiliza esse argumento, claramente o faz no sentido de conspurcar a própria homossexualidade e, logicamente, a percepção que se tem dela. Eu não sei se a própria heterossexualidade é assim tão natural e a homossexualidade assim tao anti-natural, e estamos no prisma de quem considera uma realidade anti-natural algo negativo.

A sexualidade (hetero ou homo) só se constituiu como objecto de estudo da Ciência e, consequentemente, como conceito multireferencial (a sexualidade engloba desejo, afecto, projectos em comum, amizade, companheirismo, experiência de sentidos, etc) nos finais do Séc. XIX, numa altura, em que se estavam a organizar os Estados-Nação e o Estado precisava de (re)conhecer o que tinha no seu território. Conceitos como, por exemplo, o conceito de “povo” deram lugar ao conceito de população, com todas as suas variavéis: taxas de natalidade, taxas de mortalidade, taxas de mortalidade infantil, etc. Foi precisamente nessa altura, com o advento da Revolução Industrial (que, mais tarde, deu lugar ao Capitalismo como hoje nós o conhecemos), que era preciso mais e mais pessoas para trabalhar as máquinas (crianças, inclusive). Ora, por isso mesmo, tinham que se reforçar as taxas de natalidade. Como? Criando um padrão normativo de sexualidade que tivesse como aspecto salientador a repressão aos seus desvios. Não quer dizer que esse modelo (sei que não vai gostar mas) não tivesse existido até então e sido “imposto” pela Igreja, ao longo de toda a Idade Média, mas agora ele passa a ser instaurado num dispositivo chamado sexualidade. O que antes era um acto (homens que têm sexo com mulheres, homens que têm sexo com homens, etc) passa a ser uma estrutura ampla, sujeita a regras, regras essas que se fundamentam na perseguição do seu desvio. Esse modelo vaticinava a heterossexualidade (reprodutoria) dai o tabu à homossexualidade; a monogamia, daí o tabu à poligamia e a exogamia, dai o tabu do incesto. Aprisionado num sistema de repressões, esse modelo era tudo menos natural. Isto é, a sexualidade, ela própria, é uma construção social.
Pegando no exemplo da homossexualidade (tema de discussão), ela é, dos três tabus (legítimos), aquele que so conheceu forte repressão a partir de uma determinada época da História: a instauração do poderio católico e da mentalidade judaica-cristã no governo romano de Constantino.
Como deve saber, a homossexualidade era uma realidade nas sociedades helénicas (Aristóteles que referiu, teve relações homossexuais; os seus desígnios amorosos é que o fizeram retratar o amor homossexual como anti-natural – ver História da Sexualidade I – A Vontade de Saber de Michel Foucault), romanas, sumérias e babilónicas. Mais: uma realidade instituicional/legal. As leis conjecturavam a possibilidade da homossexualidade masculina. Ao contrário do incesto (tal como a dominação masculina sobre a mulher) que sempre foi/é um tabu constante e imemorial e ao contrário da poligamia que é um tabu relativista (os arábes, que penalizam a homossexualidade, não têm muitos problemas com isso), a homossexualidade é um tabu, relativo também, e inscrito no próprio sistema sexo/género. A tríade pecado/crime/doença caracterizou a homossexualidade da IM, de tal forma que a percepção dela como um defeito (como o fez) e não como uma característica é uma constante. Mesmo por pessoas politicamente correctas.

Quando a Scientia Sexualis, nos finais do séc. XIX, começou a estudar “a homossexualidade” (acto universal e amplo – liberdade de escolha), fá-lo para descobrir as causas do “desvio” e, evidentemente repará-lo. Inutilmente. Aí nasce o homossexual (identidade circunscrita e minoritária – condição) e com ele uma categoria nova: o/a heterossexual e “a heterossexualidade” Toda esta explicação para quê? Para lhe dizer que a sexualidade não é natural, é um esquema sujeito a inúmeras represssões que estabelecem um modelo (que convém ao Estado e não à espécie: reprodução) de forma a que tudo pareça “natural” (condição) e não cultural (mutabilidade), quando na verdade as realidades, não só a sexualidade (“o instinto” , por exemplo, maternal, sexual, de sobrevivência, etc) são naturalizadas.

A anti-naturalidade da heterossexualidade

A própria heterossexualidade é uma invenção moderna, um esquema inscrito no nosso corpo (homens = penetradores; mulheres = penetradas), inserida num papel socio-sexual, mas não numa espécie de desejo que já nasce connosco, que existe connosco para perpetuar a espécie (os prórprios gregos não consideram que o desejo heterossexual diferia do homossexual visto que o belo era o elemento despertador do mesmo; não existiam dois desejos).

Aprendemos que o natural é macho e fêmea e dão-nos o exemplo dos animais mas a própria heterossexualidade está sujeita a inibições e configurações sociais: nenhum homem anda paí a fornicar mulheres em plena praça pública como os leões; existem preservativos, pílulas, reprodução medicamente assistida, lingerie, vibradores, outras formas de sexo (oral, anal, espanholadas, bacanais, etc), fantasias, fetiches que se enquandram nesse dispositivo da sexualidade, que é tudo menos natural. A heterossexualidade não é natural!

A naturalidade da homossexualidade

Quando usamos o termo “natural” podemos faze-lo com duas simbologias: referente à Natureza (realidade não modificado pelo ser humano) ou então como adjectivo de algo anormal, desviante, incomum, contra os costumes. Quando nos referimos à homossexualidade nestes termos podemos usar as duas. Mas tanto uma como outra são falaciosas. Porquê? Em primeiro lugar, existem inumeras publicações da biologia que confirmam que milhares de espécies animais têm comportamentos homossexuais (gaivotas, gorilas, hienas, pinguins, etc), a não ser que ache que a Ciência também está enviesada pelo lobby gay (que lobby poderoso! Uma minoria irrisória até influencia @s biolog@s de todo o mundo… Nada como o lobby da ICAR para desconfirmar). Esses comportamentos homossexuais, muitos deles, pressupoem copola anal (!). Porquê é que as espécies o fazem se não há objectivo reprodutivo? As hipoteses são imensas mas não me interessa debruçar-me sobre elas.

A própria reprodução não tem um carácter só heteronormativo; existe reprodução hermafrodita (minhocas), clonagem (morangos), mitose, etc. Em suma, é errado dizer que a homossexualidade é anti-natural partindo do pressuposto que natural se refira a Natureza (animal, vegetal, etc). Por outro lado, se tivermos em conta que o termo “natural” se refere a uma quantidade então seguramente a homossexualidade é um comportamento, apesar de frequente, minoritário. E atenção: minoritário a partir das concepções modernistas de (homo)sexualidade pois a propria definição de homossexualidade exacta e consubstanciada numa identidade é dúbia (ou de heterossexualidade, como quiser).

Dessa forma, a homossexualidade é anormal. Contudo, essa ilação só é válida numa perspectiva inerte/estática porque se observarmos as coisas numa perspectiva tranversal e histórica a homossexualidade passa a ser normal (= natural) pois é transversal a todas as culturas e todas as épocas independentemente de os Estados/Leis a legimitrem, reconhecerem, tolerarem ou reprimirem (@s criminos@s e violadores também mas a homossexualidade, ao contrário dos primeiros exemplos, não pôe em causa a liberdade de ninguém e esse facto é um elemento que perturba a homofobia), de tal forma que o anormal é uma sociedade sem homossexuais. Por outro lado, o termo “desvio” ou “anormal” é usado com a intencionalidade de atacar os próprios homossexuais (como se a homossexualidade fosse algo passivel de escolha ou mudança), mesmo a um nível nosólogico, mas em nada se relacionam com uma moralidade boa ou má. Isto é, o bom não é necessariamente o maioritário (e.g.: os génios) e o mau não necessariamente o minoritário (e.g.: obesos) ou vice versa. Da mesma forma, não tem que existir um padrão normativo absoluto (é normal ter olhos azuis ou castanhos? Na sociedade portuguesa é normal ter olhos castanhos mas também é normal tê-los azuis. É normal ser-se negro ou branco? É normal ser-se branco, numa sociedade francesa, por exemplo, mas também é normal ser-se negro. Relativamente à (hetero/homo) sexualidade a mesmíssima coisa. O problema é que, ao contrário das características inertes e essencialmente biológicas como cor de olhos, cor de pele, sexo, etc, a orientação sexual (encarada estrategicamente mais com um comportamento mas não necessariamente) interfere com as questões da reprodução e, portanto, é politica (para já não falar do facto de haver aqueles debates sobre a origem da homossexualidade; biológico? social?).
Agora encaramos a naturalidade como algo negativo e anti-naturalidade como algo excelso.

Nature sucks (and not in the good way) (?)

É precisamente no espectro heteronormativo do sexo não reprodutivo que a homossexualidade entra: se um homem pode fazer sexo anal com uma mulher porque é que um homem não o pofde fazer com outro homem? Qualquer pessoa, sem um pingo de hipocrisia, reconhece esse facto. Se eu lhe pedir para fazer de gay recorrerendo ao estereótipos voce elabora uma performance. É natural? Não, é montada. Os animais fazem-no? Não. Os animais não tem intelectualidade para desempenharem perfomances nem para consciencilizarem a sexualidade nem para criarem identidades nem para flirtarem com subjectividades. Os seres humanos (heteros ou homo) têm. Aliás, a propria (hetero/ homo) sexualidade pode ser a elaboração de uma identidade não-nosólogica, legitima e baseada numa subjectividade do ser, agir, desempenhar um papel que encontra o seu eco no sistema de sexo/genero, contradiando-a sempre de uma forma inconsciente (porque o sujeito não tem culpa de ser hetero ou homo) e consciente (porque o sujeito reconhece o espectro biologico e psicologizante– um gay conhece os mecanismos da reprodução e um homem hetero reconhece que sexo anal dá prazer -). Esses desvios podem não so se preconizar na orientação sexual: existem homens heterossexuais que gostam de ser dominados pelas parceiras.

Conforma-te com o corpo que tens!

O maior problema dessa identidade é pôr em causa a biologia, em última instância a reprodução e, portanto, desafiar o poder politico e o proprio modelo “naturalizado” da sexualidade, sempre numa perspectiva colectiva (reprodução) que a negativiza versus individual (desejo homossexual) que a enaltece. Dai a sua forte repressão.

Quanto à reprodução a mesmíssima coisa. Ela não está ancorada ao acto heterossexual (pénis + vagina = filh@s). Ela é opcional. A homossexualidade e o desejo de parentalidade arranca a reprodução do jugo da biologia. Transfere-a para o ar. Daí ser perigosa. Ela aparece desgarrada do casamento, da conjungalidade heterossexualizada. Torna-se instável. Não há controlo estatal sobre ela

Exemplo: se um casal (hetero) casa, à partida, terá filh@s (não necessariamente), o Estado reconhece-lhes o casamento e espera um “ovo”. Com os mesmos trâmites (orgão sexual + orgão sexual) os homossexuais não os podem ter. Mas podem ter doutras formas: reprodução medicamente assistida, barrigas de aluguer,etc. E o desejo de parentalidade é tao socialmente construído (e não um instinto) que @s propri@s homossexuais querem ser pais e mães. O problema é que esse desejo é incerto e o Estado não pode esperar “ovos”, ao contrário do casal hetero que controla com o reconhecimento do casamento.

Afirmo aqui que discordo que os movimentos LGBT’s tenham iniciado a luta da cidadania pela questão do casamento (luta muito positivista, por acaso); começando esta questão com a questão da adopção os vossos argumentos não andariam muito longe do perigo de voces incitarem à homofobia social que vincula a homossexualidade à pedofilia e pouco mais.

De resto, não faço qualquer juízo de valor em relação à homossexualidade, nem à heterossexualidade.

Ao não permitir o casamento entre PMS já o está a fazer. Está, implicitamente afirmar que determinadas identidades, identidades essas que não resultam da vontade dos individuos, não podem ser reconhecidas legalmente e portanto, através sistema de punição-recompensa, privilegia os heterossexuais e desvirtua os homossexuais. Resumindo num pensamento: “és hetero, vais ter filh@s, casas; és homo, não os vais ter (com os mesmos tramites da relaçao hetero penis + vagina), não casas, MUDA!”. Acontece que esse sistema só funcionaria se essas identidades fossem contigentes, fruto da escolha espontânea e, portanto, não o são.

Entra aqui o caso do casamento. O casamento é uma instituição pré-estadual, espontânea, que foi adoptada mais tarde pelo Estado como forma oficial de União. Está no seu código genético a dualidade homem/mulher.

Houve uma adaptação à realidade social. Desapareceu a submissão ao marido, acabaram-se os bastardos - mas acabar com a dualidade homem/mulher do casamento seria desfigurar o casamento. Há um rol de detalhes jurídicos ligados a direitos de sucessão, partilha, perfilhação, que separam este instituto de outros tipos de uniões.

O casamento só teve a uma forte simbologia heteronormativa porque na altura em que surgiu assentou numa repressão (aliás, como já referi) aos homossexuais. Algo do género: reprimamos os homossexuais e damos um presente (o casamento) aos heterossexuais.

As sociedades greco-romanas anteviam alianças homossexuais. É um facto que o casamento grego só previa uma dualidade heteronormativa mas então porque é que as sociedades modernas nunca deram aos homossexuais o equivalente às alianças gregas? Porque os homossexuais estiveram compelidos a uma criminalização.

Discordo em absoluto que o casamento seja espontâneo. Não o é. Ele faz parte de um dispositivo da sexualidade promovido pelo próprio Estado. Espontâneo seriam, por exemplo, as alianças homossexuais que o Estado nunca reconheceu.

O casamento é uma tomada de responsabilidade que é dada à escolha do cidadão. Os termos desta decisão estão formalizados há muito tempo, pelos usos e costumes dos Povos.

Parece que não entendeu! O facto de uma realidade ter sido “validada” pelos usos/costumes por um povo não quer dizer que não seja passível de alteração. É-o. Aliás, como você próprio o refere. Não é uma alteração radical pois continua o vínculo heteronormativo do casamento. Seria radical se eliminássemos o casamento entre PSD e “legalizássemos” apenas o casamento entre PMS. O problema que você coloca já o entendi: o alargamento do conceito de casamento a uma realidade diametralmente diferente (até que ponto?) como a homossexualidade pressuporia o casamento polígamo, por exemplo, pois o eixo organizativo do casamento passaria a ser os afectos. Que o seja. Porque não? O problema (como já leu no meu poste sobre as diferenças entre ambos) é que não existe uma reivindicação social nesse sentido. É uma possibilidade? É. Mas vai de encontro ao argumento que invoca sobre a pretensa mais-valia da heterossexualidade reprodutiva (que a difere da homossexualidade “enquadrada” num contexto monogâmico não-externo) e das maiores possibilidades reprodutivas da poligamia. Isso ainda não o vi a rebater. E por isso tenho quatro perguntas para lhe fazer:


- Se duas pessoas de sexo diferente podem casar porque é que três pessoas não o podem (por exemplo, um homem e duas mulheres)?

- Alarga-se o casamento a casais do mesmo sexo. O que poderá de pior ocorrer com isso? (não invoque o argumento da poligamia pois a sua “aversão” é, a meu ver, relativa – relativa de relatividade não de relativismo)

« (…) desinstitucionalização do casamento, de forma a desproteger as pessoas, a descredibilizar os contratos pessoais.»

- Desproteger pessoas?

Afirmou que não têm nenhum ódio homofóbico mas reconhece que os casais do mesmo sexo tenham as mesmas possibilidades. Indirectamente reconhece-lhes todos os direitos implícitos no casamento (aquela parvoeira sobre os direitos serem para o feto não merece resposta). A minha questão é: porque é que não se chama o mesmo nome?! Para não desvirtuar um conceito?
De um lado há a preservação de um conceito, do outro, existem vidas reais. Pessoas que morrem e um/a d@s parceir@s fica sem nada, pessoas impossibilitad@s de verem @ parceir@ ao hospital, etc. Entre um conceito e vidas reais venha o diabo e escolha. E não são meia dúzia. São um milhão. Em Portugal. Por exemplo, nos EUA, o número é equivalente à população portuguesa toda. É exactamente por ser uma minoria numerosa o suficiente para contestar que fomos perseguidos.

- Ainda não me respondeu: considera o paradigma heteronormativo de Adão e Eva correcto visto que ele pressupõe o incesto?

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