terça-feira, 30 de março de 2010

Nem tudo o que reluz é Rendimento Mínimo de Inserção

Conversa trivial sobre a vida, a política, a crise e a economia:

Pessoa x: - Essas pessoas, que vivem à custa do rendimento mínimo, deviam eram arranjar um trabalhinho para elas. Há por aí muita oferta de emprego para varrer ruas…

Eu: - As pessoas, usualmente, criticam aqueles que “vivem às custas” dos rendimentos mínimos mas não criticam aqueles que possuem reformas milionárias.

Pessoa x: - Mas aqueles que têm reformas milionárias lutaram para as ter. Merecem…

Bem, dito assim, é tudo muito giro. Mas façamos um trabalho de desconstrução sobre este pequeno excerto de diálogo (que aconteceu mesmo!) e que, diga-se de passagem, é muito comum ouvir-se, até em gente, digamos, “culta”.

• Em primeiro lugar, há, por parte da pessoa x, uma tendência para acreditar que as pessoas que “vivem à custa do rendimento mínimo”, de facto, não façam nada na vida, não procuram trabalho, sejam uma párias sociais, etc. Não lhe passa pela cabeça que as pessoas, DE FACTO, necessitem daquele dinheiro para gerir as suas vidas, ou temporariamente, ou de uma forma mais perene (com os seus limites, obviamente). E todos/as nós conhecemos gente que, DE FACTO, vive às custas desses rendimentos (que deveriam servir de suportes e passaportes para novos rumos profissionais) mas cuidado com as generalizações;

• Em segundo lugar, há uma tendência para colocar essas pessoas (tanto as pessoas que vivem às custas dos rendimentos mínimos - RMs – como aquelas que, de facto necessitam) num patamar profissional que seja desvalorizado sócio-profissionalmente ou até mesmo desacreditado. Não lhes ocorre (a esta pessoa x e a todas as outras pessoas x’s) que as pessoas que usufruam desses RMs tenham expectativas mais altas do que “varrer ruas”. Aliás, as pessoas x’s reconhecem que “varrer ruas” é tudo menos privilegiante e é precisamente esse reconhecimento e essa tendência para colocar as pessoas carenciadas numa categoria desprivilegiada, que impede a mobilidade social e as práticas emancipatórias. É pois parte de uma estratégia para manter os seus habitus de classe e assim o seu estatuto social mantém-se inalterável. Rich will be rich;

• Em terceiro lugar, eu não sei se as pessoas com reformas milionárias, de facto, lutaram para as ter. Está-se a fazer um juízo de valor. Eu não sei se houve alguma arbitrariedade para se conseguir essas reformas. Convenhamos: à medida que alguém vai acumulando capital, o seu status, reconhecimento e poder vão aumentando proporcionalmente à quantidade do seu capital. Ora, esse aumento exponencial de reconhecimento e poder traz consigo novas formas de arbitrariedade a que as pessoas socialmente/economicamente mais desfavorecidas não possuem. Por isso, não sei se podemos falar de justiça social como estaria patente no comentário da pessoa x e, portanto, não sei até que ponto os ganhos (materiais e simbólicos) das pessoas, tomadas como self-made men, foram obtidos de forma justa e merecida;

• Em quarto lugar, as pessoas que se candidatam ao RM são, invariavelmente, sujeitas a inúmeras burocracias que, muito provavelmente, as pessoas detentoras de reformas milionárias nunca serão pois o RM é um acto individual (que depois pode ser um usufruto colectivo ou não) de candidatura, de procura; a reforma é um sistema de garantia (quando há descontos, obviamente). A Segurança Social tem sistemas apertadíssimos de controlo a pessoas candidatas ao RM que não tem a quem faz descontos. Ponto;

• Em quinto lugar, as pessoas desfavorecidas, pelos mecanismos institucionais que mobilizam (no seu apoio), são, indirectamente, responsáveis por inúmeros postos de trabalhos. A elas, o seu mérito;

• Em sexto lugar, analisar as realidades, de cima, tem o péssimo defeito de se aferir as consequências e valorizar essas consequências em detrimento da base e dos seus contextos. Aí reside a diferença de como direita e esquerda encaram a igualdade. A direita procura uma escala igual para toda a gente e diz: agora esperem para seleccionar os melhores. Ela não pretende conhecer as causas, as razões, etc. Nada. Ela só quer saber dos resultados (as tais consequências). O seu diagnóstico é, à partida, justo (pois a escala é igual para todos/as) mas olhando de perto, ao negligenciar os backgrounds e os pontos de partida (e assim o reconhecimento das desigualdades) está-se a cometer a pior das atrocidades, em nome da equidade. A esquerda, pelo contrário, reconhece o desnivelamento dos pontos de partida e desconstrói para se chegar à complexidade das causas de diferenciação. A que reconhecimento chega? Chega-se à complexidade, à problematização constante e, assim, à compreensão. Dessa forma, procura-se adequar a escala avaliativa aos contextos e parâmetros de cada pessoa e/ou de cada família. Essa valorização da especificidade demorada (mas justa) não existe na universalidade imediata da direita (injusta). Tudo isto para dizer o quê? Será que existe uma facilidade das pessoas desfavorecidas (quando uso esse termo identitário, uso-o em termos socioeconómicos) em encontrar trabalho/emprego? Não serão já estigmatizadas, vítimas do estereótipo e sujeitas a esquemas pingue-pongue de profecias auto-realizadas? E dirão: Lirismo? Não, pertinência. Obtenção de “lucros” através do velhíssimo esquema da vitimização? Não, é a lei da sobrevivência no seu melhor, nem que se recorra ao chico-espertismo. Ora, não é esse o princípio da arbitrariedade das elites?

Portanto, atenção quando lançamos os nossos raciocínios em bruto, repletos de verdadinhas verdadeiras e falácias imediatas. Nem tudo o que reluz é ouro. Neste caso, Rendimento Mínimo de Inserção.

Já agora o euromilhões é uma questão de justiça ou injustiça social. Se é uma questão de justiça social (na medida em que os privados podem fazer o que quiserem com o dinheiro) porque é que são exactamente esses privados que exigem do Estado mais segurança e penalidade?! Fica a dúvida...

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