sábado, 5 de fevereiro de 2011

Cameron e os fracassos do multiculturalismo (liberal)


De vez em quando a direita surpreende-nos com afirmações que, longe de serem provincianas, são efectivamente carentes de racionalidade. Desta vez foi a vez de David Cameron, primeiro-ministro britânico e líder do Partido Conservador. Refere ele que o projecto do multiculturalismo fracassou. «Oh», dizemos nós.

Não posso deixar de salientar o facto de gostar da utilização do passado no verbo fracassar: indica um corte (como quem diz, “acabou, já não é preciso revisita-lo”) e uma nova visão de futuro (“que se lixe o multiculturalismo!”).

Ora pois bem, o problema será o multiculturalismo ou a forma como ele é pensado/operacionalizado? Certamente Cameron sabe a distinção entre multiculturalismo (mero reconhecimento das "diferenças" culturais, zoo show) e interculturalidade (interação, diálogo, construção conjunta).

De facto, Cameron mostra-se preocupado com o extremismo. Ora, o extremismo é transcultural porque qualquer um/a (branco/a, negro/a, árabe, homem, mulher, gay, hetero, cigano/a, etc) pode ser extremista, contudo, percebe-se que a indirecta é para a comunidade islâmica no restante discurso.

Cameron argumenta que «é preciso uma identidade nacional mais forte e uma política de “liberalismo musculado” para reforçar os valores da igualdade e da lei junto de todos os elementos da sociedade». Olé, diria eu se gostasse de analisar os discursos de uma forma readerly text, isto é, exactamente como o/a interlocutor/a quer que eu os perceba (ou digira).
Desconstruindo: se o multiculturalismo tem a função de deshierarquizar as “diferentes” culturas como é que se pode exigir (?) uma identidade nacional. Mais: o que é isso de identidade nacional? Parece-me (e isto sou eu que devo ter uma noção muito parca do que é “a sociedade”) que a identidade nacional é construída perante um melting point (como um grande clube de futebol composto por brasileiros/as, africanos/as, portugueses/as, ingleses/as, etc, que represente uma nação) e não sobre a égide de um projecto eugenista homogéneo (como um plano hitleriano de “enlourecer” a população).

Percebe-se que a ideia de igualdade de Cameron é por si só racista e fascizóide, típico dos neoliberais, cujas diferenças são toleradas a partir do momento em que representem um bem material para as grandes empresas multinacionais (o nicho gay – ou pink dollar - é um bom exemplo), daí a referência a um “liberalismo musculado” que, paradoxalmente, vai ao gym queimar as calorias estrangeiras mas farta-se de engordar à custa dessas mesmas calorias.
É ou não é um paradoxo defender esse tal liberalismo e simultaneamente exigir o controlo das fronteiras (Cameron, Sarkosy)? Não deverá também o Estado fechar as fronteiras às multinacionais?

Cedo, Cameron revela todo o seu argumentário anti-estatal quando refere que «as organizações que pouco fazem para combater o extremismo devem deixar de receber dinheiros públicos» mas não deixa de ser curioso que, preocupado com a necessidade de todas as crianças aprenderam o inglês (afinal, só uma cultura realmente importa… a linguagem como dispositivo de hegemonizar nações) e com a necessidade de as escolas promoverem a “cultura comum do país” (que anula as “diferentes” culturas e oculta a heterogeneidade das pessoas), procure a todo o custo privatizar a Escola Pública (Passos Coelho, Cavaco Silva).

De facto, gosto da forma como o discurso dele (re) inventa o Estado: ora responsável na promoção da "cultura comum", ora distante na promoção do multiculturalismo. Estranho... Pergunto-me: é ou não é um paradoxo exigir igualdade perante a lei quando se procura, a todo o custo, liberar a lei da regulação do Estado? É, no mínimo, perverso usar o Estado para… destatizar. Nesse sentido, para Walzer (1999: 144)

«O multiculturalismo como ideologia é um programa que visa a uma
maior igualdade econômica e social. Nenhum regime de tolerância
funcionará por muito tempo numa sociedade imigrante, pluralista,
moderna e pós-moderna, sem a combinação destas duas atitudes:
uma defesa das diferenças grupais e um ataque contra as diferenças
de classe».

Eu entendo o multiculturalismo (o Canadá, nos anos 80, foi o primeiro país a aplicar este projecto) como uma “forma anti-discriminatoria” da gestão das relações raciais. Ora, a ênfase, no discurso de Cameron, nos/as islâmicos/as, faz exactamente o contrário: promove o estigma contra um determinado grupo social (sexual, racial, étnico, …), já que a linguagem não é neutra (se digo, por exemplo, que os/as ciganos/as são x, estou a dar à sociedade – esse aglomerado de pessoas que também são “os/as” ciganos/as - o que ela deve pensar sobre os/as ciganos/as e os/as ciganos/as sobre si).

É uma situação/posição ingrata defender (ou desejar enquadra-las no quadro favorável) determinadas culturas que integram rituais aos quais discordamos profundamente (subordinação das mulheres – sem direito de voto, leis do adultério, excisão do clítoris -, repressão à homossexualidade – criminalização, não reconhecimento legal -, etc), como a cultura islâmica na sua essência mas presumo que muitos/as antes de mim já lidaram com essa dificuldade: por exemplo, os/as republicanos/as. Lutando contra a soberania absolutista monárquica e tudo o que ela representa (poder, elitismo, ditadura, biologismo, …), cedo se deram conta que a própria República poderia abarcar esses mesmos esquemas com as ideologias de cada partido.

aqui falei nos interesses neoliberais em algumas agendas progressistas (Cameron mostrou-se tão receptivo ao casamento entre PMS) mas Cameron parece seguir a cartilha islamofóbica europeia. Não admira que seja um apoiante fervoroso de Mubarak, mesmo que isso signifique ir contra os seus ideais libertários que o seu discurso tanto apregoa.

Quem defende o globalismo capitalista não pode atentar contra as liberdades culturais já que a globalização é um processo multifacetado e paradoxal. Como refere Silveira (2008: 66), «(…) com o período pós-colonial e com os processos de globalização, contudo, as desigualdades tanto no Nor te como no Sul foram aprofundadas, ocorreu uma mobilidade crescente das populações do Sul para o Norte, bem como a diversificação étnica das populações residentes nos países do Norte. Como consequência a distinção entre os dois tipos de sociedades (as que têm cultura e as que são cultura) ficou cada vez mais difícil de ser sustentada (…)».

Mais: não sei se trata de uma questão de identidade cultural ou identidade religiosa mas sobre a laicização não vi Cameron falar. Não se esqueça Cameron que o liberalismo não é um campo neutro de encontro para todas as culturas, mas a expressão política de um só tipo de organização política.

Conclusão: nunca o multiculturalismo (ou interculturalidade?) fez tanta falta num mundo sobre uma crise financeira de que não há memória, prova viva de que o capitalismo… fracassou. Ou melhor, fracassa, porque não gosto dos verbos no passado.

Referências bibliográficas utilizadas:

SILVEIRA, Eloise da (2008) “Multiculturalismo versus interculturalismo: por uma proposta intercultural do Direito”, In Desenvolvimento em Questão, Vol. 6, Núm. 12, pp. 63-86
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

WALZER, Michael (1999) Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes.

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